quinta-feira, 19 de junho de 2014

A Igreja Católica ante a homossexualidade: contextualizações e indicações pastorais (parte 3 de 4)


Como divulgamos aqui, a Revista Vida Pastoral está lançando em julho-agosto um número temático sobre homoafetividade e fé cristã. Reproduzimos esta semana os artigos dessa edição relacionados ao tema de capa; começamos por este do Pe. Luís Correa Lima, SJ, em duas partes (primeira e segunda), e continuamos agora com o artigo de Edênio Valle, em quatro partes (a primeira está aqui e a segunda, aqui). Para quem quiser acesso à edição virtual da revista na íntegra, é só clicar aqui. Segue a terceira parte do artigo:

3. O Catecismo da Igreja Católica (1992)

3.1. Como se sabe, o Catecismo foi redigido para compendiar o que a Igreja ensina e precisa ser guardado por todos os fiéis, como um item básico de referência. O Catecismo não diz tudo sobre os temas que aborda, quer apenas resumir o que a Igreja considera essencial. No caso da homossexualidade (cf. n. 2.357-2.359 e 2.331-2.333), ele não entra em questões ainda em fase de esclarecimento. Ao falar da homossexualidade, começa com uma espécie de definição. A simples leitura dessa definição já demonstra que os redatores do verbete estavam atentos ao que hoje se discute na biomedicina e nas ciências psicológicas e sociais. A homossexualidade, afirma o Catecismo, implica “relações entre homens e mulheres que sentem atração sexual, exclusiva ou predominante, por pessoas do mesmo sexo”. Esse fenômeno fundamentalmente humano, segundo o texto, tem uma origem psicológica ainda sem explicações satisfatórias. Além disso, revestiu-se das mais variadas formas ao longo dos séculos, de acordo com as distintas culturas. A cultura de hoje lhe conferiu algumas características próprias ao nosso tempo.

3.2. Do ponto de vista da moral, o Catecismo retoma o que os dois textos já comentados nos afirmaram. Vê a prática de atos homossexuais como inadmissível do ponto de vista da moral cristã, pois é uma “desordem”. Como tal, contraria a lei natural porque é fechada ao dom da vida e desprovida daquela complementaridade e reciprocidade à qual a sexualidade integral naturalmente se endereça. Reconhece que o número de pessoas com orientação homossexual “não é negligenciável” e que essa tendência pode estar fundamentalmente ancorada no organismo (seria “inata”). Diz, também, que ela pode representar uma “provação”para a pessoa, sublinhando que “toda pessoa, homem ou mulher, deve reconhecer e aceitar sua própria identidade sexual” e que a pessoa humana “não pode ser adequadamente descrita por uma referência reducionista ao seu ou à sua orientação sexual” (n. 16). Essas duas observações são de suma relevância, pois supõem a originalidade fundamental de cada pessoa. Em uma cultura que massifica a sexualidade e a reduz a um objeto, é essencial a defesa da diferenciação e originalidade da pessoa em sua dimensão sexual.

Uma pessoa de orientação homossexual não o é por opção; deve, por isso, ser aceita com respeito, sensibilidade e compaixão, pois também essas pessoas “são chamadas a realizar a vontade de Deus na sua vida e, se forem cristãs, a unir ao sacrifício da cruz do Senhor as dificuldades que podem encontrar por causa de sua condição”.

4. Outros documentos posteriores

Vou me referir ainda a três outros textos, deixando de lado uma consideração mais cuidadosa da recente encíclica Deus Caritas Est, de Bento XVI, que muito tem a nos dizer sobre o amor humano assim como este se revela no homem e na mulher.[7]

4.1. Em um desses documentos, que leva o título de Considerações sobre os projetos de reconhecimento legal das uniões entre pessoas homossexuais, elaborado pela Congregação para a Doutrina da Fé, a tomada de posição é formalmente contrária às modificações que estão sendo introduzidas em vários países no sentido de favorecer a união civil entre casais homossexuais de ambos os sexos. No contexto, estão em discussão também a ética e as normas sobre a adoção de crianças por parte desses casais.

É uma discussão polêmica, presente também no Brasil (cf. Martin, 1995). A posição manifestada pela Santa Sé provocou especial repulsa por parte de seus críticos por ser interpretada como uma intervenção descabida da Igreja em um tema laico e civil. Não caberia a uma Igreja dizer se essa mudança na legislação seria ou não uma exigência da justiça e uma prática pertinente em sociedades laicas como as atualmente existentes no Ocidente. Em uma sociedade plural, o injusto seria tentar impor a opinião de um grupo, religioso ou não, sobre a dos demais. O texto, em si, repisa os mesmos conceitos e princípios nos quais a Igreja vinha insistindo desde os anos 1970, por exemplo: “as relações homossexuais estão em contraste com a lei moral natural [...] pois fecham o ato sexual ao dom da vida”. Mas há afirmações mais taxativas e de tom mais duro, por exemplo: “por seu caráter imoral [...] ela é nociva a um reto progresso da sociedade humana”.

4.2. Outro texto veio do Secretariado para a Família, organismo da Santa Sé chefiado por prelados reconhecidamente conservadores. Foi publicado quase concomitantemente com o pronunciamento sobre a união civil de casais homossexuais. Trata-se de um léxicon (não, portanto, de um pronunciamento) sobre a sexualidade e a família. No verbete sobre a homossexualidade emite-se um juízo crasso e quase grosseiro. Em vez de apresentá-lo, julgo mais oportuno citar o que escreve João Silvério Trevisan, assumindo o papel de porta-voz da indignação dos homossexuais brasileiros (cf. Trevisan, 2004). Para ele, o Lexicon perpetua

velhos preconceitos, num raciocínio capcioso que chega à arrogância. Contrapondo-se à Organização Mundial da Saúde, define a prática homossexual como “um conflito psíquico não resolvido” que “favorece um desvio”, o que a torna “contrária ao vínculo social e aos fundamentos antropológicos”. Assim, desautoriza casais homoafetivos a constituir família, sob o pretexto de se tratar de “atormentados” que sofrem de “impotência ansiogênica”. Numa inversão perversa que torna a sociedade vítima de militantes homossexuais, o documento acusa-os de conspirar para ganhar poder na ONU e no Parlamento Europeu. E demoniza homossexuais como vilões que minam a moral familiar. Há cinismo ao esconder que a própria Igreja partilha da responsabilidade de criar atormentados/as. Bastaria um mínimo de sensatez para compreender como o seu poder espiritual afeta gravemente a vida de milhões de pessoas, por minar a autoestima e estimular o ódio social aos homossexuais. Ao contrário de sua propalada vocação pastoral, a Igreja não se dá conta sequer do sofrimento psíquico que impõe a milhares de homossexuais católico/as e à numerosa parcela homossexual do clero.

4.3. O terceiro documento, que retoma e sintetiza muito do que a Igreja oficial havia afirmado nos textos até aqui citados, é a Instrução sobre os critérios de discernimento acerca das pessoas com tendência homossexual e da sua admissão ao seminário e às ordens sacras, de 2005.[8]

Dois tópicos dessa instrução chamam especialmente a atenção do psicólogo. Logo no início, após citar suas muitas fontes eclesiásticas sem fazer distinções (cf. nota 2 da instrução), é tratado o tema da maturidade afetiva e da paternidade espiritual necessária a um presbítero católico. A linguagem é, propositadamente, a da “tradição constante da Igreja”e não a da academia ou da ciência psicológica. Saliento, nessa parte, duas afirmações da instrução; uma delas “define” o que é a homossexualidade e a outra oferece os critérios a serem usados pela autoridade eclesiástica responsável pela formação dos futuros padres ou religiosos:

No que respeita às tendências homossexuais profundamente radicadas, que certo número de homens e mulheres apresenta, também elas são objetivamente desordenadas e constituem, frequentemente, mesmo para tais pessoas, uma provação. Estas devem ser acolhidas com respeito e delicadeza: evitar-se-á, em relação a elas, qualquer marca de discriminação injusta. Essas pessoas são chamadas a realizar em sua vida a vontade de Deus e a unir ao sacrifício da cruz do Senhor as dificuldades que encontrar (n. 4).

A Igreja não pode admitir ao Seminário e às Ordens sacras aqueles que praticam a homossexualidade, apresentam tendências homossexuais profundamente arraigadas ou apoiam a chamada cultura gay. Essas pessoas encontram-se, de fato, numa situação que obstaculiza gravemente um correto relacionamento com homens e mulheres. De modo algum, se hão de transcurar as consequências negativas que podem derivar da ordenação de pessoas com tendência homossexual profundamente radicada. Diversamente, no caso de se tratar de tendências homossexuais que sejam apenas expressão de um problema transitório como, por exemplo, o de uma adolescência ainda não completa, elas devem ser claramente superadas, pelo menos três anos antes da ordenação diaconal (n. 6).

Há, nesse documento, uma lacuna que causa estranheza a quem entende de psicologia e/ou psicoterapia. Trata-se de uma questão que envolve a formação profissional de quem deve emitir um parecer a respeito do tipo, grau e complexidade do envolvimento homossexual do candidato portador dessa tendência. A instrução parece dispor que é às autoridades eclesiásticas (o bispo, o reitor do seminário, os formadores, o diretor espiritual e o confessor) que incumbe o discernimento tanto da idoneidade vocacional quanto do psicodiagnóstico de cada candidato. Discernir, por exemplo – coisa nem sempre fácil –, entre o caráter “transitório” ou “profundamente radicado” da tendência. Não deixa de ser preocupante que a instrução parta desse pressuposto, pois há casos em que se torna indispensável colaboração dos especialistas da psicologia e da pedagogia para chegar a distinções diagnósticas e encaminhar os cuidados psicoterapêuticos muitas vezes indispensáveis e que são, por lei, privativos de profissionais devidamente credenciados.

5. Pronunciamentos moral-teológicos

5.1. Na teologia católica, os ensinamentos do magistério sempre tiveram um peso decisivo, uma espécie de palavra final seja qual fosse a natureza do tema em debate. As aberturas ou fechamentos do que ele preceitua repercutem na reflexão dos teólogos, seja estimulando, seja coibindo sua função de aprofundamento, explicitação, crítica ou aplicação. As posições hoje existentes na teologia moral sobre a homossexualidade refletem bem essa situação. Os teólogos de outras Igrejas cristãs[9] gozam de maior liberdade, uma vez que não têm de se preocupar com limites e condições, em geral restritivas, que são de praxe na Igreja Católica. No tocante à sexualidade, têm crescido cada vez mais as posições críticas, mesmo que sub-repticiamente. Há três correntes teológicas a esse respeito: uma mais tradicional, que até chega a criticar o Vaticano como demasiado condescendente neste campo; outra, seguramente majoritária hoje em dia, que tenta aprofundar as brechas que os pronunciamentos oficiais oferecem; e uma terceira, que vê como inadequado e insuficiente o tratamento que as autoridades maiores da Igreja Católica dão à sexualidade em geral e, consequentemente, à homossexualidade e aos homossexuais.

Pioneiro na discussão psicopastoral da homossexualidade foi o médico, psicanalista e sacerdote francês Marc Oraison.[10] Para ele, ser homossexual não podia ser a priori visto como algo “mal”. O fato de alguém serhomossexual “não comporta em si nenhuma maldade moral”(Vidal, 1985, p. 117). Oraison foi bem além do ensinamento oficial e teve provavelmente influência sobre ele, na medida em que foi um dos primeiros a propor que, também quanto ao juízo e tratamento pastoral e médico-psicológico da tendência homofílica, o critério principal de sua eticidade fosse o grau e a qualidade de sua “humanização”. Sobre os homossexuais, ele afirmava expressamente:

o prazer intercambiado e compartilhado pode ser uma expressão de amor, na medida justamente em que se o viva em uma relação intersubjetiva alcançada… O prazer erótico não é forçosamente a expressão do amor, ou seja, de uma relação verdadeiramente intersubjetiva. Pode ser “solitário”, pode ser buscado também com um companheiro ao qual se situa, sobretudo, como objeto, como instrumento de excitação e distensão orgástica. Mas pode ser verdadeiramente relacional. Um sujeito homossexual não pode sentir-se atraído por esse prazer se não com um sujeito de seu mesmo sexo. Representa, como vimos, um inacabamento da evolução afetiva, uma imperfeição quanto ao acesso à diferenciação (sexual). Mas o homossexual não pode mudar nada em semelhante situação, que está sofrendo com pesar. Não é, portanto, impossível que, nessa situação que é a sua, chegue a viver uma relação erótica com um companheiro igualmente homossexual que seja, ao nível do que lhes é acessível, a expressão de uma verdadeira relação intersubjetiva. Pode-se falar, em tal caso, de um “pecado”? (apud Vidal, 1985, p. 118).

5.2. Na sequela de reflexões como a de Oraison, vale a pena chamar a atenção para o esforço de moralistas católicos para chegar a uma compreensão e avaliação ética mais correta do “comportamento” homossexual. Em tal comportamento, esses teólogos procuravam distinguir os comportamentos “desintegradores” – que se verificam também em heterossexuais (aberrações, promiscuidade, prostituição, pedofilia, abusos e atos não vinculativos etc.) – dos comportamentos que propiciam e manifestam uma evolução em curso no nível psicoafetivo, humano e cristão. O que diz, por exemplo, J. McNeill resume bem a posição de fundo que hoje se tornou dominante na ética sexual cristã: “as mesmas regras morais que se aplicam às atividades e condutas heterossexuais” se aplicam igualmente às pessoas de tendência homossexual (apud VIDAL, 1985, p. 117). Outro ponto em que reina relativo acordo prático e pastoral é a aplicação do princípio do “mal menor”. Mas, naturalmente, há que perguntar, caso a caso, se essa “solução” não seria uma maneira de fugir pela tangente, evitando as árduas controvérsias suscitadas por pessoas com tendência homossexual comportamentalmente estabelecida.

Os pastores, segundo Vidal (1985, p. 110), precisam aprender a adotar uma “atitude de provisoriedade” relativamente ao que é divulgado como resultados (biológicos, genéticos, neurológicos, psicológicos e antropológicos) proclamados definitivos e seguros, venham eles de setores “progressistas” ou de arraiais “conservadores”. Os dados científicos de que dispomos não podem ser vistos dessa forma simplista. Logo, tampouco o juízo ético e a atitude pedagógica ou pastoral devem ser categóricos quando se observam os critérios e valores teológico-pastorais nos quais a Igreja julga seu dever insistir também em nossos dias. Assim sendo, continua Vidal (1985, p. 110), a avaliação moral e pastoral-pedagógica da homossexualidade “deverá ser formulada em uma chave de busca e de abertura”.A finalidade última que o moralista, o educador e o pastor devem ter em mente deveria ser libertar-se e libertar as pessoas e o meio em que atuam “de falsas compreensões e das injustas normas sociojurídicas em que a mentalidade dominante (acrítica e ideológica) a encarcerou”. É função da educação e da ética “ser uma força mais interna… (na) emancipação humana, nesse âmbito da condição homossexual” (VIDAL, 1985, p. 125).

Portanto, o padre e o educador cristão devem saber integrar a avaliação e a ajuda formativa aos indivíduos de tendência homossexual em um projeto ético mais amplo e mais articulado com toda a sexualidade humana e com cada ser humano em sua unicidade e totalidade de seu ser-assim.

5.3. A história da moral cristã – seja da católica, seja da protestante (cf. Maspoli, 2006) – mostra especial dificuldade em situar o lugar antropológico e ético do prazer sexual. São maneiras de ver a sexualidade eivadas de elementos antropológicos e filosóficos que se inspiram no dualismo maniqueu e na tendência neoplatônica, popularizada por Agostinho, de negar qualquer espaço e valor ao prazer sexual.

A interpretação tradicional das passagens bíblicas relacionadas à homossexualidade está sendo questionada e superada pelos conhecimentos da exegese contemporânea; representa uma visão minimalista dos dados bíblicos, assim como estes aparecem nas Escrituras e, mais ainda, nas atitudes de Jesus.

A própria teologia da sexualidade e do matrimônio, bem como a nova visão da pessoa, está levando ao questionamento de conceitos e práticas tidas, durante séculos, como as únicas compatíveis com a fé e a santidade cristãs.

À medida que o conhecimento sobre a homossexualidade foi avançando, a Igreja sentiu a necessidade de rever posições já não justificáveis, sem se afastar, contudo, da experiência humana e cristã de quem funda seu comportamento no evangelho e nos valores do Reino. Entre os pontos revistos, podem ser listados os seguintes:

Reconhecer que houve uma redução indevida da sexualidade homossexual à sua dimensão genital e, em consequência, a uma visão moral e pastoral dependente mais do biológico do que do pessoal;
Reconhecer que não tem fundamento a suposição de que a homossexualidade seja uma condição reversível, dependente apenas da vontade da pessoa homossexual e não de outros fatores complexos;
Reconhecer o caráter machista, “androcêntrico” e antifeminista de suas posições no passado. A visão, por exemplo, da mulher como “um macho mutilado” colaborou muito para uma condenação a priori da homossexualidade e do homossexual e do surgimento de um clima homofóbico que caracterizou certos ambientes conventuais;


Reconhecer a unilateralidade de uma visão que tem a procriação como condição única para o exercício moralmente permitido da sexualidade. Tal critério era aplicado universalmente e teve um peso determinante no que concerne à homossexualidade, fazendo que os atos homossexuais fossem vistos fora de uma visão de conjunto mais ampla, que poderia lhes conferir outro significado humano. A valorização exagerada da finalidade procriadora da sexualidade deixava na penumbra outros possíveis critérios, como, numa palavra, a philia e o próprio ágape cristãos, enfatizados por Bento XVI em sua primeira encíclica.


Em suma, os pronunciamentos da Igreja sobre a homossexualidade não representam um ponto final das discussões. Devem ser encarados como um alerta que baliza o debate, um juízo emitido com o objetivo de salvaguardar o que é essencial, do ponto de vista da dignidade das pessoas, da sexualidade humana e do modo cristão de viver a sexualidade como dom e responsabilidade de vital importância para a humanidade. Nesse sentido, é normal que o conhecimento que a humanidade adquire sobre a sexualidade afete, até certo ponto, as concepções e os modos de comportamento relativos a essa dimensão fundamental para a realização humana, propiciando um amadurecimento cada vez mais pleno das pessoas.

[Continua amanhã]

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