quarta-feira, 18 de junho de 2014

A Igreja Católica ante a homossexualidade: contextualizações e indicações pastorais (parte 2 de 4)


Como divulgamos aqui, a Revista Vida Pastoral está lançando em julho-agosto um número temático sobre homoafetividade e fé cristã. Reproduzimos esta semana os artigos dessa edição relacionados ao tema de capa; começamos por este do Pe. Luís Correa Lima, SJ, em duas partes (primeira e segunda), e continuamos agora com o artigo de Edênio Valle, em quatro partes (a primeira está aqui). Para quem quiser acesso à edição virtual da revista na íntegra, é só clicar aqui. Segue a segunda parte do artigo:

2. Pronunciamentos da Santa Sé sobre a homossexualidade

Até aqui, apenas contextualizei rapidamente alguns aspectos do estado da questão. Propositadamente, não mencionei o que se passa nos arraiais do clero (sobre esse ponto, cf. Nasini, 2001). Passarei, a seguir, a expor o que os documentos e pronunciamentos da Santa Sé têm reafirmado sobre o tema e indicarei, em rápidas pinceladas, a recepção deles pelos teólogos e pastoralistas da Igreja.

Tomarei como referência os textos que, em minha avaliação, marcam o surgimento de um enfoque até certo ponto novo na abordagem da homossexualidade pela Igreja oficial. Comentarei especialmente dois deles: o de 1975, publicado no Brasil em 1976, e o outro, de 1985. Ambos têm como destinatários “os bispos da Igreja Católica”, o que os caracteriza como textos também de natureza pastoral, ou seja, não dirigidos ao público externo, mas sim aos que devem conduzir a ação evangelizadora na Igreja. É importante frisar essa origem e esses destinatários dos textos para não buscar neles o que não pretendem nem podem oferecer.

O documento de 1976 leva o nome de Declaração sobre alguns pontos da ética sexual. Foi elaborado pela Congregação para a Doutrina da Fé, o que me parece ser sintomático, por deixar claro que, para a autoridade eclesiástica, se tratava basicamente de uma questão de doutrina. O outro foi publicado dez anos mais tarde, em 1986. Procede da mesma fonte, mas é redigido na forma de uma carta Sobre o cuidado pastoral de pessoas homossexuais.

O objetivo de ambos os documentos é esclarecer tanto princípios de doutrina quanto de pastoral afetados pela discussão pública, cada vez mais acesa, em torno da homossexualidade. Há, provavelmente, por trás do documento de 1986 uma decisão pessoal do papa João Paulo II, que, àquela época, imprimia às diretrizes da Cúria Romana uma orientação católico-conservadora, centrada na defesa do pensamento católico sobre a família, o aborto, as políticas de controle de natalidade, as reivindicações do feminismo e as legislações liberais relativas à homossexualidade que começavam a aparecer nos parlamentos dos países ocidentais, secundando costumes cada vez mais disseminados no Ocidente secularizado. Aliás, essa preocupação quanto ao aspecto “teológico-doutrinal” foi uma constante também de outros pronunciamentos do pontificado de João Paulo II. Sabe-se, além do mais, que nos dicastérios e secretariados mais diretamente responsáveis pelas tomadas de posição normativas estavam alguns dos cardeais e teólogos mais conservadores da Cúria Romana.

Apesar de os documentos apresentarem avanços – o que é necessário valorizar –, encontraram igualmente rejeições e críticas, como era de esperar.[3] Em muitos ambientes, a repulsa foi quase total, o que, provavelmente, fez que leitores e comentaristas engajados não valorizassem devidamente os avanços e pistas novas constantes dos textos. Naturalmente, havia também o outro lado, o partido dos conservadores, que criticava os escritos por terem cedido demasiado à pressão da opinião pública liberal.


2.1. A Declaração sobre alguns pontos de ética sexual, de 1976

O documento de 1976 parte de um posicionamento claro da Santa Sé e marca um distanciamento do magistério em relação à opinião de teólogos católicos e protestantes – mesmo de Igrejas – mais abertos ao diálogo. Considera com extrema preocupação “a tendência a julgar com indulgência e até mesmo a desculpar completamente as relações homossexuais em determinadas pessoas”. E argumenta afirmando que esse modo de pensar fere “o constante ensino do magistério… e o sentir moral do povo cristão”.

2.1.1. Aventa, em defesa de sua posição bastante severa, dois argumentos principais. Um é bíblico. A declaração afirma de modo categórico que, para a Bíblia, “os atos[4] de homossexualidade são intrinsecamente desordenados [...] não podem, em hipótese alguma, receber qualquer aprovação”. No entanto, abre uma brecha que evita uma leitura taxativamente negativa e condenatória dos textos do Antigo e do Novo Testamento, ao sublinhar que a Bíblia “não permite [...] concluir que todos aqueles que sofrem de tal anomalia sejam por isso pessoalmente responsáveis”. Um segundo argumento é tirado da ordem natural das coisas, um argumento de enorme peso na teologia medieval e na patrística, bem na linha existente já na Bíblia judaica. De acordo com essa interpretação, existe uma “ordem moral objetiva” segundo a qual “as relações homossexuais são atos destituídos da sua regra essencial e indispensável” que é a procriação, ditada pela natureza criada por Deus.

Apesar dessa avaliação moral “objetivista e extrínseca”(expressões usadas por Azpitarte, 1997), a declaração apresenta vários elementos que podem ajudar a contextualizar, de maneira diferente, a homossexualidade. São conceitos que aparecem, sobretudo, no momento em que a declaração abandona a chave doutrinal e passa a tratar a questão à luz de um sentido pastoral e pedagógico. Mas mesmo esses parágrafos benévolos são precedidos por uma reprovação de todo e qualquer “método pastoral que reconheça uma justificação moral desses atos (homossexuais) por considerá-los conformes à condição dessas pessoas”.

Em outro parágrafo, o documento acentua que os que padecem de tal “anomalia”não são necessariamente responsáveis por ela, uma vez que não o fazem por escolha própria. Este é um ponto fundamental, no qual insistem quase todos os moralistas contemporâneos. Azpitarte, por exemplo, diz:

o simples fato de apresentar tendências homossexuais, de sentir atração pelo próprio sexo, é um fato que não entra no campo da moralidade. Ninguém é bom nem mau por experimentar tendências e sentimentos que não pode afastar de si e que, inclusive, experimenta como um destino imposto à margem de sua vontade, algo assim como faz com que nasçamos homem ou mulher. Na medida em que a homofilia não se baseia em uma opção escolhida, não há lugar para culpa. O pecado tem outras categorias, que não radicam na existência pura e simples de um fenômeno psicológico, mas sim na aceitação livre e voluntária das práticas homossexuais (1997, p. 78).

De tal raciocínio decorrem sérias consequências para a consideração do comportamento relativo à pessoa do homossexual. Ao lado do rigor quanto às questões de princípio, surge, na moral católica e nos textos da autoridade eclesiástica, evidente interesse em favorecer uma atitude de maior acolhida na ajuda às pessoas de tendência homossexual. Isso é expresso claramente em frases da declaração como a seguinte:

Indubitavelmente, essas pessoas homossexuais devem ser acolhidas, na ação pastoral, com compreensão, e devem ser apoiadas na esperança de superar suas dificuldades pessoais e sua inadaptação social. Também sua culpabilidade deve ser julgada com prudência.

2.1.2. Após essa breve apresentação do documento de 1976, chamo a atenção do leitor para uma observação que reputo importante. Há indícios de que no texto existe uma concomitância entre uma “linha dura” e outra, mais branda, no que diz respeito ao acolhimento da pessoa homossexual. João Paulo II, em um discurso aos bispos norte-americanos, reafirmou essa posição, assinando em primeira pessoa o que a Santa Sé e também alguns episcopados já haviam afirmado sobre o mesmo assunto.[5] Esse discurso do papa antecipava, de alguma maneira, um texto mais denso, publicado dez anos depois pela Congregação para a Doutrina da Fé, em 1986. Dada a tumultuada recepção[6] da declaração de 1976 por parte da opinião pública mundial, parece que era dupla a intenção do papa com esse discurso pronunciado no país onde a polêmica se fazia mais agressiva: manter o rigor doutrinário, mas, simultaneamente, ressaltar a dignidade fundamental e os direitos do homossexual como pessoa. De alguma forma, João Paulo II pretendia, assim, afastar da Igreja a pecha de hostil à sexualidade e de preconceituosa quanto aos homossexuais e suas reivindicações políticas e sociais.

2.2. Carta de 1986 sobre o atendimento das pessoas homossexuais

2.2.1. A carta se apresenta de maneira modesta ao afirmar que não quer nem pode ser “um tratado exaustivo”, admitindo, assim, que também a Igreja sabe que está diante de uma questão de grande complexidade. Nesse sentido, a carta procura se fundamentar “nos resultados seguros das ciências humanas”. Mas, além do que as ciências ajudam a trazer à luz, a Igreja procura em seu horizonte próprio, que é o da fé, sabendo que esse ângulo, muito especialmente em questões de moral sexual, não pode prescindir de um “estudo atento, empenho concreto e reflexão honesta, teologicamente equilibrada”,sobre o fenômeno homossexual.

O texto, porém, causa a impressão de ser doutrinariamente ainda mais restritivo que o anterior. Já em seu terceiro parágrafo, ele volta à questão dos atos homossexuais como atos “privados de sua finalidade essencial e indispensável” e expressa taxativamente:

a particular inclinação da pessoa homossexual, apesar de não ser em si mesma um pecado, constitui um comportamento intrinsecamente mau do ponto de vista moral. Por este motivo, a própria inclinação deve ser considerada como objetivamente desordenada.

Esse discurso duro e direto permeia quase toda a carta e se faz notar, especialmente, nos seguintes itens: na caracterização dos atos homossexuais; na interpretação teológica dos textos bíblicos; na reação às contestações, críticas e manipulações políticas recebidas pelo documento de 1976 e na condenação de algumas “interpretações excessivamente benévolas”que certos teólogos quiseram dar à condição homossexual etc.

Nos Estados Unidos, a afirmação que causou mais polêmica na imprensa e na militância gay foi a que reiterava a noção de “desordem objetiva”como inerente à homossexualidade e, ao menos indiretamente, também à pessoa do homossexual. Sou da opinião que a intenção da carta não era diminuir os homossexuais, mas foi assim que ela foi lida, como uma tentativa de brecar a luta por seus direitos. Em vários passos, porém, guardando um tom pastoral, o documento afirma o valor e a dignidade dos homossexuais. Eles são descritos como pessoas “frequentemente generosas e que se doam” (n. 7); como investidos de “uma dignidade natural… (que)… deve ser sempre respeitada em palavras, em ações e nas leis” (n. 10); como detentores de uma “liberdade fundamental que caracteriza toda pessoa humana e lhe confere dignidade” (n. 11); como tendo especial “direito” ao cuidado pastoral da Igreja (n. 13-17).

2.2.2. Do lado católico, destacaram-se os posicionamentos do bispo norte-americano Mons. John R. Quinn. Em um artigo influente, ele encarou o controvertido ponto da “homossexualidade como desordem e doença”, depreendido da leitura da carta. Quinn se situou na linha da Associação Americana de Psiquiatria, que, em seu famoso DSM (Diagnostic and Statistical Manual), havia abandonado a classificação da homossexualidade como enfermidade ou desordem psicológica, passando a considerá-la como uma modalidade normal de comportamento. Em que pese o fato de os textos de Roma insistirem em usar a expressão “desordem intrínseca”, dando quase a entender que à homossexualidade se associa necessariamente algo doentio, na opinião de Quinn, o texto da Congregação para a Doutrina da Fé não tinha nem poderia ter a intenção de dirimir um problema de natureza médica e psiquiátrica. Não competiria ao magistério abordar tecnicamente esse problema, do âmbito da ciência médica e psicológica. É interessante notar que o cardeal Joseph Ratzinger, então prefeito da congregação que preparara o texto, escreveu uma carta pessoal a Mons. Quinn, agradecendo sua “cuidadosa análise”e as “pertinentes orientações… que mostravam claridade e sensibilidade pastorais”.

2.2.3. No tocante à discriminação e violência de que os homossexuais foram vítimas no passado e sofrem também hoje, a carta se expressa sem meias palavras:

é de se deplorar firmemente que as pessoas homossexuais tenham sido, e sejam ainda hoje, objeto de expressões malévolas e de ações violentas. Semelhantes comportamentos merecem a condenação dos pastores da Igreja, onde quer que aconteçam. Eles revelam uma falta de respeito pelos outros, que fere os princípios elementares sobre os quais se alicerça uma sadia convivência civil.

O que acontece é que, mesmo quem não está envolvido pessoalmente com a causa homossexual, ao esbarrar com conceitos como “desordem objetiva”, se pergunta sobre a possibilidade de coadunar expressões de apreço pela pessoa do homossexual, presentes em alguns outros trechos desses documentos, com julgamentos tão taxativos quanto o de “desordem objetiva”, à qual, segundo o texto, a homossexualidade estaria sempre e necessariamente associada.

2.2.4. Preparando a parte mais inovadora e positiva – a relativa ao acolhimento das pessoas –, a carta retoma alguns aspectos que já apareciam na Declaração de 1976. Podemos enumerar os seguintes: a referência ao dever dos pastores de procurar melhor compreensão da condição homossexual; a necessidade de julgar com prudência sua possível culpabilidade moral; a distinção entre “a condição ou tendência”, de um lado, e os “atos homossexuais”, de outro. Em sua parte conclusiva, a carta se estende sobre a verdade, a libertação, o amor e a misericórdia, considerados como dimensões integrais do acolhimento pastoral devido a todos os cristãos sem discriminação alguma.

A carta, dando um passo não suficientemente definido no documento de 1976, reconhece a capacidade do homossexual de ser sujeito de suas decisões. Quando cristão, essa dignidade, que lhe vem de sua capacidade de optar e se autogerir, abre-lhe a possibilidade e o dever de viver o que a fé cristã exige de qualquer batizado em termos de santidade, vivência do amor e observância dos mandamentos. Nesse particular, um homossexual não difere, portanto, de um heterossexual. Todos, para lá das orientações que sua sexualidade pode experimentar, são chamados ao mesmo caminho de crescimento humano e plenitude espiritual em Cristo.

[Continua amanhã]

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