terça-feira, 17 de junho de 2014

A Igreja Católica ante a homossexualidade: contextualizações e indicações pastorais (parte 1 de 4)


Como divulgamos aqui, a Revista Vida Pastoral está lançando em julho-agosto um número temático sobre homoafetividade e fé cristã. Reproduzimos esta semana os artigos dessa edição relacionados ao tema de capa; começamos por este do Pe. Luís Correa Lima, SJ, em duas partes (primeira e segunda), e continuamos agora com o artigo de Edênio Valle, em quatro partes. Para quem quiser acesso à edição virtual da revista na íntegra, é só clicar aqui. Segue a primeira parte do artigo:


O artigo expõe o pensamento ético da Igreja Católica sobre a homossexualidade, assim como sua forma de apresentação nos documentos emanados da Santa Sé. Ao mesmo tempo, faz breve resenha das posições de alguns moralistas contemporâneos e de contribuições da psicologia e da pedagogia para um melhor manejo da questão da homossexualidade por parte da Igreja.

Introdução

Minha experiência de contato direto com boa parte do clero do Brasil me mostrou que, entre nós, presbíteros, há um desconhecimento bastante generalizado do que a Igreja Católica tem dito e repetido sobre a ética sexual em geral e, mais especificamente, sobre a homossexualidade. O que a gente geralmente escuta são generalizações imprecisas (pró e contra) que dão a entender que a Igreja Católica continua a considerar a homossexualidade apenas como uma anomalia ou desvio patológico que ofende a lei natural e é sempre e necessariamente um pecado, o que de fato não corresponde nem ao que a Igreja ensina nem aos fatos.

1. Caminhando para nova compreensão teológica e pastoral

Um bom exemplo da abertura da Igreja acha-se sintetizado na declaração feita pela Congregação para a Doutrina da Fé em 29 de dezembro de 1975, um dos momentos em que, na Cúria Romana, se dá um endurecimento doutrinário e disciplinar. Lê-se aí um parágrafo que representa uma abertura em parte brecada, mas não desmentida:

A pessoa humana, segundo os dados da ciência contemporânea, está de tal modo marcada pela sexualidade que esta é a parte principal entre os fatores que caracterizam a vida dos homens. Na verdade, no sexo radicam as notas características que constituem as pessoas como homens e mulheres no plano biológico, psicológico e espiritual, tendo assim muita parte em sua evolução individual e em sua inserção na sociedade.[1]

Não é difícil perceber que o parágrafo supracitado traz algumas novidades que merecem aprofundamento. Primeiro, nele se diz, com todas as letras, que o ser humano é uma pessoa e, enquanto tal, tem sua vida e evolução social e psicológica marcadas e condicionadas pela maneira como é marcada sua vivência da sexualidade. Sublinha-se, assim, que não se pode falar da pessoa e de sua sexualidade em sentido abstrato e/ou puramente espiritualizante. Dizer “pessoa” implica afirmar sua qualidade de ser situado e datado, portador de um corpo sexuado, mas ao mesmo tempo – porque pessoa – livre e potencialmente desenvolvido em ao menos três planos essenciais de seu existir: o biológico, o psicológico e o espiritual. A sexualidade, portanto, abrange o todo do humano. Não cabe dualizar o existir. Há uma espécie de osmose entre sexualidade e existência. Nesse sentido, pode-se dizer que o indivíduo humano não tem um sexo; ele é sexo. O existir humano comporta e supõe uma maneira própria de ser no mundo e uma capacidade também racional de lhe dar sentido. Em outros termos, como dizia o papa Bento XVI[2] em sua primeira encíclica, ele não pode, em consequência, ser concebido sem a sexualidade, ou seja, sem o eros, que implica o corpo, a philia, a dimensão da amizade,eo ágape, que abre o ser humano para uma relação que transcende e complementa as duas primeiras. Um ser humano sexualmente adulto sem essas três dimensões é tão impensável quanto um homem sem sentimentos, sem inteligência e/ou sem vínculos pessoais que o impliquem responsavelmente. O problema, nesse campo tão ambíguo da vivência humana, concentra-se especialmente em saber falar sobre oeros e o prazer que propicia e saber lidar com eles. A dificuldade não está só ou principalmente na philia ou noágape. O problema, no dizer de Moreira (2006), é que, quando o assunto é o eros em sentido estritamente sexual, um dos assuntos mais explorados e lucrativos da nossa sociedade atual, aí o tema se torna um tabu para a Igreja e seus representantes ordenados, deixando a todos sem recursos para superar certos impasses. A Igreja, em tais circunstâncias, tende a ficar batendo, monotonamente, nas mesmas teclas (Moreira, 2006, p. 4). No caso da homossexualidade, pesam ainda preconceitos que datam de muitos séculos e são hodiernamente sentidos como ofensa a direitos humanos básicos. São temas difíceis que a Igreja, ultimamente, tem tentado enfrentar, até porque seus presbíteros têm sido insistentemente acusados de abusos e destemperos sexuais em diversos países do mundo.

Para a Declaração de 1975, a sexualidade relaciona-se com a capacidade que o ser humano tem de reciprocidade (de ser-com). Como tendência que tem um componente libidinal congênito, tal capacidade já está presente em algumas espécies inferiores, mas, na espécie humana, ela se faz dentro de uma relação “eu-tu”.

Sendo uma realidade tão fundamental e complexa, a sexualidade, especialmente no caso das homofilias, não pode ser definida apenas desde um único ponto de vista histórico, ético-cultural ou teológico-doutrinal, por importante que ele possa ser. Isso se tornou mais evidente devido aos notáveis avanços das modernas ciências biomédicas, sociais e psicológicas, óticas que exercem enorme influência na atual discussão sobre a homossexualidade. Para quem vem da psicologia, como eu, o fato de um texto como o da Declaração de 1975 iniciar com uma menção expressa à necessidade de ter presente o aporte das ciências representa um passo altamente significativo. De maneira muito clara, o texto diz que a teologia e a ética cristãs não podem voltar as costas às descobertas científicas. Eu acrescentaria que esse princípio tem validade mesmo quando as evidências científicas são altamente questionadoras de modos de ver, julgar e agir defendidos no passado pela Igreja, com ou sem o apoio da Escritura e da Tradição. Como encontrar caminhos que respondam a tais desafios das ciências e da sociedade sem, ao mesmo tempo, negligenciar ou deixar de lado o papel que cabe essencialmente à Igreja no exercício de sua missão evangelizadora no mundo contemporâneo? Acompanhando o que tem sido dito e feito pelo papa Francisco, tenho a impressão de ser essa a pergunta que ele nos faz em alguns de seus pronunciamentos esporádicos sobre o assunto. Entre moralistas católicos de clara fama, a reflexão parece caminhar na mesma direção. É o caso de Snoek (1981), Azpitarte (1997), Vidal (1985), Moser (2001), Cozzens (2001) e Forcano (1996) e de pastoralistas e psicólogos como Oraison (1976), Leers e Trasferetti (2002), Valle (2011) , dentre outros outros, que têm se debruçado sobre o tema da homossexualidade não sem suscitar suspeitas por parte das autoridades eclesiásticas e de setores mais conservadores da Igreja.

No presente texto não me aterei ao mérito teológico e doutrinário das argumentações. Minha perspectiva será a da psicologia social, com ênfase no cuidado psicoterapêutico e pastoral, procurando evitar polêmicas do tipo “ou tudo ou nada”. Evitarei, igualmente, entrar no debate científico mais específico das ciências biomédicas e demais ciências afins. No fundo, o que pretendo mostrar é que, na parte doutrinária, a Igreja se mantém coerente com os seus ensinamentos tradicionais, mas, no tocante à pastoral (isto é, ao acolhimento e acompanhamento das pessoas), sua atitude é de maior compreensão para a complexidade desse comportamento em cada um de seus múltiplos e distintos aspectos, tanto científicos quanto bíblico-teológicos e históricos (cf. ALISON, 2010;; BOSWELL, 1985;; CRAWFORD e ZAMBONI, 2005; DI VITO, 2005; MALINA, 2005 e outros). A transição processual das posições da Igreja está longe de ter chegado a resultados conclusivos, mas existe já uma vontade de entender e dialogar. Ao lado dessas inegáveis aberturas, aparecem, porém, resistências e fechamentos. Há grupos fundamentalistas de tendência quase diametralmente oposta, e nesse embate cabe à Igreja preservar dons e valores preciosos. Nos Estados Unidos, a dissensão é ainda mais veemente, devido à força política do movimento gay e também aos dolorosos escândalos comportamentais surgidos no seio do clero. Lá, hoje, o debate é escancaradamente público, tendo sido quebrada a maneira sigilosa com que, durante séculos, assuntos como a homossexualidade eram debatidos e as normas e medidas pastorais e disciplinares eram tomadas.

Não é nada fácil solucionar o impasse pastoral em que a Igreja se debate. O primeiro ano do pontificado do papa Francisco aponta, sem dúvida, para uma retomada do diálogo com a modernidade – ela mesma em crise –, mas persistem vacilações e dificuldades que não podem ser subestimadas. Uma delas reside no fato de o magistério eclesiástico continuar mantendo uma visão e um referencial unilateralmente patriarcais. Desse prisma, torna-se difícil para o magistério discutir padrões de comportamento sexual que há séculos a Igreja declara serem “contra a natureza” criada e desejada por Deus e o exercício de sexualidades alternativas é sempre visto e julgado só negativamente (NOLASCO, 1995; GREEN e TRINDADE, 2005, dentre outros. Ora, na realidade social e cultural contemporânea, a “minoria” homossexual já não vive no “gueto” cultural a que fora relegada (com o aval da Igreja). Hoje, ela se apresenta como legítima representante de uma luta libertária que tem como objetivo defender direitos proclamados elementares em sociedades democráticas. Nas Paradas do Orgulho Gay, esse movimento coloca milhões de simpatizantes e militantes nas grandes avenidas das capitais brasileiras. Conta, para tanto, com a ajuda interessada do “mercado” gay e da indústria do espetáculo (SIMÕES e FRANÇA, 2005). Nas telas da Globo, o beijo homossexual em uma novela recente foi recebido com aplausos por milhões de brasileiros, até por famílias inteiras, que encaravam com simpatia o itinerário de um dos principais personagens do enredo e de um grupo de parceiros seus. Além disso, no Congresso Nacional, seguindo uma tendência mundial, são aprovadas leis que legitimam os direitos dos cidadãos e cidadãs homossexuais. Os formadores de opinião e a imprensa caminham inequivocamente na mesma direção. Não existe, porém, unanimidade, pois, assumindo posições antagônicas, existe uma massa até certo ponto anônima, do meio da qual se destacam deputados e senadores ligados principalmente a Igrejas neopentecostais. Resulta daí crescente animosidade entre grupos homofóbicos, que perseguem e agridem homossexuais nas praças e ruas, e outros que, ao contrário, saem às ruas em defesa dos direitos dos homossexuais. Aos poucos, porém, surge e ganha consistência o que Castells (1983) chamou de “cultura identitária homossexual”.Em tal clima cultural, não é de estranhar que surjam desentendimentos de princípio também no seio das Igrejas cristãs, como a Católica.

Resumindo: a Igreja (a grande comunidade de fé) e os pastores (os que são postos à frente do povo de Deus) estão, sim, em busca de nova ética sexual, mas, ao mesmo tempo, veem-se presos a certas amarras que os impedem de lidar, de forma mais desimpedida, com a nova mentalidade existente especialmente entre os mais jovens. Os textos e pronunciamentos emanados da Santa Sé buscam indicar caminhos alternativos, novas atitudes e normas pastorais para o acompanhamento. Embora a lógica individualista, secularizada e permissiva que preside hoje a sociedade, a cultura e a política em todos os campos continue sendo rejeitada, é inegável a existência, na Igreja, da disposição de repensar perguntas de fundo antes descartadas e vistas como indignas de consideração. Eis algumas dessas perguntas: a) São as posições e normas tradicionalmente tidas como inquestionáveis corroboradas pelos conhecimentos que temos hoje da Bíblia e da teologia da sexualidade? b) São os posicionamentos e concepções adotados até bem recentemente compatíveis com os dados seguros das ciências que estudam a sexualidade humana? c) No caso da minoria de tendência homossexual, a Igreja mantém sua posição de respeito à pessoa humana em seus direitos e dignidade? d) Haveria caminhos pastorais alternativos mais aptos para ajudar os católicos e a humanidade a viver suas tendências sexuais – homo ou heterossexuais – na perspectiva dos valores essenciais da fé cristã? e) A motivação que leva a Igreja a falar de um modo mais aberto da homossexualidade teria sido “segurar” a onda da opinião pública, hoje largamente disseminada, segundo a qual os homossexuais teriam direito à plena cidadania na sociedade e na Igreja e seria seu modo de comportar-se “uma” das formas normais de viver a sexualidade humana? Tanto mais que a essa visão e prática se soma vasto movimento político-cultural em torno da “causa” homossexual, cujos objetivos últimos seriam a autorrealização da pessoa, a aplicação dos avanços do conhecimento científico nesse campo e a nova visão antropológica, ética e teológica que a humanidade vem desenvolvendo a respeito da sexualidade como um direito do indivíduo em sociedades livres, laicas e democráticas. Essa é uma polêmica complexa que está longe de chegar ao seu fim.

[Continua amanhã]

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