quinta-feira, 8 de maio de 2014

Para além dos dogmas


A espiritualidade é anterior à institucionalização das crenças e, em vez de respostas, traz perguntas, tolerância, meditação

Participei, de 1º a 4 de maio, do Encontro Nacional de Juventudes e Espiritualidade Libertadora. Reuniu cerca de 400 pessoas em Fortaleza, a maioria com menos de 30 anos. A notícia triste foi a transvivenciação, em Goiânia, dia 2, de Dom Tomás Balduino, bispo dominicano defensor de indígenas e sem-terra.

Há, hoje, uma busca difusa por espiritualidade. Porém, os sedentos não encontram com facilidade o caminho do Poço de Jacó (João 4).

Até o surgimento do cristianismo, as religiões se prendiam a limites étnicos, culturais e territoriais. O apóstolo Paulo universalizou a proposta de Jesus, estendeu-a a todos os povos sem precisarem renunciar a suas identidades culturais.

Por que espiritualidade e não propriamente religião? Espiritualidade e religião se complementam, mas não se confundem. A espiritualidade existe desde que o ser humano irrompeu na natureza. As religiões são recentes, datam de oito mil anos.

A religião é a institucionalização da espiritualidade, como a família o é do amor. Há relações amorosas sem constituir família. Há espiritualidade sem identificação com religião. Há, inclusive, espiritualidade institucionalizada sem ser religião, caso do budismo, uma filosofia de vida.

As religiões, em princípio, deveriam ser fontes de espiritualidade. Em geral, elas se apresentam como catálogos de regras, crenças e proibições, enquanto a espiritualidade é livre e criativa. Na religião, predomina a voz exterior, da autoridade religiosa. Na espiritualidade, a voz interior, o “toque” divino.

A religião é instituição; a espiritualidade, vivência. Na religião há disputa de poder, hierarquia, excomunhões, acusações de heresia. Na espiritualidade predominam a disposição de serviço, a tolerância para com a crença (ou a descrença) alheia, a sabedoria de não transformar o diferente em divergente.

A religião culpabiliza; a espiritualidade induz a aprender com o erro. A religião ameaça; a espiritualidade encoraja. A religião reforça o medo; a espiritualidade, a confiança. A religião traz respostas; a espiritualidade, perguntas. Religiões são causas de divisões e guerras; espiritualidades, de aproximação e respeito.

Na religião se crê; na espiritualidade se vivencia. A religião nutre o ego, uma se considera melhor que a outra. A espiritualidade transcende o ego e valoriza todas as religiões que promovem a vida e o bem. A religião provoca devoção; a espiritualidade, meditação. A religião promete a vida eterna; a espiritualidade a antecipa. Na religião, Deus, por vezes, é um conceito; na espiritualidade, experiência inefável.

Há fiéis que fazem de sua religião um fim. Ora, toda religião, como sugere a etimologia da palavra (religar), é um meio de amar o próximo, a natureza e a Deus. Uma religião que não suscita amorosidade, compaixão, cuidado do meio ambiente e alegria serve para ser lançada ao fogo.

Há que se cuidar para não jogar fora a criança com a água da bacia. O desafio é reduzir a distância entre religião e espiritualidade. E não abraçar uma religião vazia de espiritualidade nem uma espiritualidade solipsista, indiferente às religiões.

Há que fazer das religiões fontes de espiritualidade, amor e justiça. Jesus é exemplo de quem rompeu com a religião esclerosada de seu tempo e vivenciou e anunciou uma nova espiritualidade, alimentada na vida comunitária, centrada na atitude amorosa, na intimidade com Deus, na justiça aos pobres, no perdão. Dela resultou o cristianismo.

Quem pratica os ritos de sua religião, acata os mandamentos e paga o dízimo, mas é intolerante com quem não pensa ou crê como ele, pode ser um ótimo religioso, mas carece de espiritualidade. É como uma família desprovida de amor. A espiritualidade deveria ser a porta de entrada das religiões.

- Frei Betto

Fonte

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