terça-feira, 7 de janeiro de 2014

Carta de um pai gay a um bispo homofóbico


Nos últimos dias, lemos na imprensa as palavras insistentes do Papa Francisco de que "o Evangelho se anuncia com doçura e amor, não com porretadas inquisitoriais" (aqui) e na necessidade de manter o coração aberto e em busca, movido pelo desejo profundo de mudar o mundo (ainda aqui); lemos suas reflexões sobre a importância de formar o coração dos sacerdotes, para que "despertem o mundo" (aqui) e não se transformem em "pequenos monstros" (aqui, aqui e aqui); e recordamos, ainda, como fato-síntese do diálogo entre LGBTs e Igreja em 2013, a resposta e a benção dada pelo Papa a um grupo de LGBTs católicos italiano (aqui). Ontem, lemos também esta carta de um espanhol, gay, casado e pai de um menino de três anos, que defende seu casamento e seu filho dos ataques de um bispo homofóbico.

Achei de fundamental importância traduzir e compartilhar essa carta não só por sua clareza e pertinência, mas também porque coincide em muitos pontos com a carta que enviamos aos Bispos da Igreja Católica (saiba mais aqui. Ainda não assinou a petição on-line? Clique aqui!). Suas palavras sobre a família, especialmente, encontram eco em nosso pedido:
Todos nós, como pessoas LGBT, filhas e filhos de Deus, nascemos no seio de famílias, das mais diversificadas, e todos nós buscamos viver em família, seja ela eletiva ou biológica. Como Católicos, sabemos que Nosso Senhor Jesus Cristo sempre promoveu e promove mais a família eletiva que a biológica. Ou seja, consideramos que o discurso Católico sobre a família nos toca profundamente, sobretudo porque estas palavras de Jesus nos ressoam: "A minha mãe e os meus irmãos são os que ouvem a palavra de Deus e a põem em prática” (Lucas 8, 21). Temos as mais variadas experiências de vida familiar (...). Por isto, não podemos deixar de notar que, até agora, o discurso eclesiástico sobre a família nos trata como se fôssemos os inimigos da família, hostis de alguma forma à sobrevivência da mesma. Porém, nenhuma dinâmica familiar pode ser considerada saudável se alguém nela é tratado como ovelha negra (ou rosa). E isto nos leva a pedir que os Senhores não insistam em “defender” a família contrapondo-a aos direitos e à estabilidade psíquica e espiritual das pessoas LGBT. Estas “defesas” soam como forma de se imiscuir de maneira pouco evangélica em vivências familiares complexas em que todos sairiam ganhando se o assunto fosse tratado com honestidade, escuta, paciência e carinho. [Leia na íntegra aqui.]
Que a defesa veemente que este marido e pai faz de sua família nos inspire a buscar um coração sempre mais aberto, como pede o Papa Francisco, e um olhar sempre mais evangélico e acolhedor em relação às realidades vividas pelos nossos irmãos, por mais distintas ou distantes que possam parecer das nossas próprias vivências; e a orar por nossos sacerdotes, para que cada vez mais tenham o coração e os olhos abertos em amoroso serviço aos irmãos e possam ser, assim, sinais da Boa Nova de Cristo na terra.

Com carinho,


Casimiro Lopez Llorente, bispo de Segorbe Castellón [Espanha], começou 2014 não só atacando o casamento gay, mas também criticando os filhos de famílias homoparentais. Ao mesmo tempo em que responsabiliza o primeiro pela destruição da família, descreve os segundos como crianças com graves perturbações de personalidade, propensas a desenvolver comportamentos violentos.

Pedro Fuentes, casado com um homem e pai de um filho de três anos, responde ao bispo:

"Monsenhor, na minha cidade, quando uma pessoa é de classe social baixa ou baixa em termos de sua conduta, usamos uma expressão simples: 'pobre' — embora seja muito diferente ser pobre de dinheiro ou pobre de espírito. Digo isso por causa de uma carta em que o senhor denigre certas crianças, ainda que a palavra amor permeie cada uma das homilias que se ouve nas igrejas e catedrais.

Suas palavras, senhor bispo, soam como um tapa na cara. São palavras inaceitáveis, por mais que, ao revesti-las de assertividade, o senhor pretenda conferir-lhes um brilho de que carecem.

O senhor alega que o casamento entre pessoas do mesmo sexo é a base "para a destruição da família" e tem entre seus efeitos "o aumento significativo de crianças com grave distúrbio de personalidade".

Só me ocorrem três possíveis razões para tais afirmações.

A primeira é que o senhor se baseie em evidências. Mas isso não é possível, não existem evidências disso. Eu poderia lhe apresentar uma infinidade de referências a artigos publicados em revistas médicas, de bioética, psicológicas ou psiquiátricas (estas, talvez as mais significativas, se é nesses dados que o senhor tem maior interesse) mostrando que não há nenhuma diferença entre os filhos de homossexuais e os de heterossexuais, entre crianças de famílias tradicionais e de famílias não tradicionais, como o senhor diria. Não só não existem, como os estudos indicam uma tendência (não significativa, é verdade, mas tendência ainda assim) a um maior compromisso dessas crianças com os Direitos Humanos e a defesa dos mais fracos, com relação aos quais elas mostram mais empatia. Os pesquisadores concluem que isso se deve à sua criação em um ambiente familiar que lhes inculca esses valores, já que seus pais ainda precisam defender os próprios direitos, Direitos Humanos, quase todos os dias, como estou fazendo aqui. Pena que o senhor mesmo não foi educado nesses valores e nessa defesa.

A segunda razão possível para que o senhor faça tais afirmações é que esteja falando por experiência. Espero que não seja essa a razão; caso seja, lamento muito. Viver em uma família que destroce uma criança deve ser horrível; e se, mais de 60 anos depois, as feridas ainda estão sangrando, só pode ser por terem sido muito profundas. A violência na família é algo medonho. Ainda assim, suas dores não podem ser uma desculpa para infligir dor aos outros. Ao contrário, devem constituir razão para defender o ser humano, não para criminalizá-lo injustamente.

A terceira razão seria a impudência da palavra: falar por falar, para causar danos e dor, para criar uma base ideológica a partir da qual atacar o outro só por ser diferente, por não viver como eu desejo. Aí há que reconhecer a existência de uma grande tradição. Basta lembrar a facilidade com que passamos do "não julgueis e não sereis julgados" para a Santa Inquisição — que, além de julgar, foi responsável pelo saque, tortura e morte de milhares de pessoas. Contudo, senhor bispo, por mais que o senhor queira a Idade de Ferro do papado não voltará mais, nem o esplendor do Poder Temporal, nem o senhor poderá ostentar seu ouropel em passeio por suas terras, recebendo as homenagens do povo.

Respeito se conquista, não é concedido por um anel ou uma mitra. A Igreja vem se esquecendo das bases que a formaram e o episcopado se distorceu de uma tal maeira que ninguém mais se lembra das palavras da Primeira Epístola de S. Paulo a Timóteo: 'quem aspira ao episcopado, saiba que está desejando uma função sublime. Porque o bispo tem o dever de ser irrepreensível, casado uma só vez, sóbrio, prudente, regrado no seu proceder, hospitaleiro, capaz de ensinar. Não deve ser dado a bebidas, nem violento, mas condescendente, pacífico, desinteressado; deve saber governar bem a sua casa, educar os seus filhos na obediência e na castidade. Pois quem não sabe governar a sua própria casa, como terá cuidado da Igreja de Deus?' [1 Timoteo 3:1-5] Marido... prudente... condescendente... filhos... são belas palavras. O senhor, que não formou uma família (viver em família não é o mesmo que formá-la), em vez de vivê-las, não só se permite opinar como tem o atrevimento de condenar.

Defenda seu modelo de família ou sociedade, mas respeite, como quer ser respeitado, os outros modelos. E, se quiser falar de crianças em situação de risco, volte seu olhar para as centenas delas que, aqui na Espanha, passam fome todos os dias — FOME, senhor bispo, enquanto milhões de euros chegam às mãos dos ricos sem que ressoe, nos palácios episcopais, o chicote com que Jesus açoitou os vendilhões do templo. Não admito que ninguém falte ao respeito com meu filho, nem pelo modo como ele nasceu, nem por ser filho de quem é. Com suas palavras, o senhor desrespeitou não só a ele, mas a milhares de crianças que não conhece e, obviamente, nem pretende conhecer. Desrespeitou milhares de famílias sobre as quais nada sabe, porque nem as entende nem tem a alma limpa para delas se aproximar. A concupiscência, a lascívia na palavra, é um pecado grave, especialmente quando fere inocentes.

'Em verdade eu vos declaro: todas as vezes que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, foi a mim mesmo que o fizestes.' (Mt, 25, 40)

Esta é a minha esperança: saber, que mais cedo ou mais tarde, o senhor comparecerá perante Ele. Saber que Ele o olhará no rosto. Saber que Ele lhe lançará Seu desprezo. Porque ser bispo não pode jamais significar ferir qualquer um destes meus irmãos pequeninos.

A meu marido e a mim, Deus nos deu um filho. O fato de o senhor não ter compreendido isso só mostra o quanto está longe d’Ele.

Pedro Fuentes"

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