sábado, 5 de maio de 2012

Da missa tridentina à reforma litúrgica do Vaticano II (parte 1)

Imagem daqui

Com uma forte marca autobiográfica, o prior de Bose relata como viveu a missa nos anos anteriores à reforma litúrgica. Palavras densas de memória e ricas de sugestões, que transparecem todo o afeto para com uma forma litúrgica que foi alimento espiritual imprescindível na primeira parte da sua vida. E, na passagem para a nova forma da missa, posterior ao Vaticano II, os seus inegáveis enriquecimentos – em particular a língua e o lecionário – e alguns defeitos – no canto litúrgico. Na reforma, enfim, reside "a continuidade, a tradição que cresce e se renova para não morrer ou decair, mas que sempre sabe conservar a si mesma, a mesma aliança entre Deus e seu povo".

Publicamos aqui a primeira parte da análise do monge e teólogo italiano Enzo Bianchi, prior e fundador da Comunidade de Bose. O artigo foi publicado na Revista do Clero Italiano, n°. 3, de março de 2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto, aqui reproduzido via IHU.


Introdução
Há muito tempo, eu sentia o dever de contar como eu vivi a missa por 20 anos, antes da reforma litúrgica desejada pelo Concílio Vaticano II. Eu sinto esse dever por diversas razões. Acima de tudo, porque em mim a recordação dessa missa permanece muito viva: dos meus seis aos 24 anos, ela foi, para mim, a missa cotidiana, uma missa em que eu "servia" como coroinha.

Essa missa era a principal fonte da minha vida espiritual, era a missa que me moldava todos os dias, era a liturgia de comunhão com o Senhor, na qual eu crescia e fazia discernimento sobre a minha vida e sobre a minha vocação.

Mas também há uma outra razão pela qual eu sinto esse dever de memória. Muitos dos que têm a minha idade ou são ainda mais velhos e, portanto, viveram como eu ou mais do que eu essa forma litúrgica, parecem não lembrar, não sabem mais falar a respeito, nem sabem lê-la: eu constatei isso mais de uma vez, ficando perturbado muitas vezes com tanto desmemoriamento...

Não se trata, porém, da transcrição de recordações pessoais, como se fossem minhas memórias, nem de nostalgia por parte de um senescente: é uma comparação entre duas formas de celebração, entre dois ritos capazes de celebrar o mistério de Cristo, mas um derivado do outro e gerado pelo mais antigo, na continuidade do crescimento da fé e da eloquência da fé que é a liturgia católica.

Ao escrever este testemunho, eu espero apenas ser verídico, honesto comigo mesmo dentro do possível, porque é verdade que a experiência da missa reformada pelo Concílio Vaticano II também me moldou, ou, melhor, muito mais, já que é a "minha" missa há mais de 40 anos, é a missa que eu vivo na minha comunidade, como monge que tenta ser cristão.

Espero não ferir ninguém e prestar um serviço àqueles que querem um testemunho sobre essa missa que hoje pode ser celebrada como rito extraordinário, concedido por Bento XVI àqueles que se sentem ligados e afeiçoados a essa forma pré-conciliar.

O leitor poderá, portanto, fazer uma comparação, poderá compreender ainda mais a continuidade entre os dois ritos e, ao mesmo tempo, discernir a "graça" que a reforma litúrgica contribuiu para a vida de toda a Igreja.

A missa tridentina
Comecemos dizendo alguma coisa sobre o tempo e sobre o espaço dessa liturgia. Nas cidades do interior, como a minha, a missa dos dias de semana era celebrada às 6h da manhã: um horário que ia ao encontro das necessidades das pessoas, em particular das mulheres, que, mais tarde, deviam trabalhar em casa.

Às 6h, eu estava na sacristia e ajudava o pároco a se vestir: ele, depois de tê-lo beijado, vestia o amito sobre as costas e ao redor do pescoço, depois vestia a alva, tomava o cíngulo e a estola que eu lhe estendia, depois vestia a casula, e eu lhe amarrava o manípulo.

Nesse ponto, o padre estava pronto e, depois de fazer uma reverência para a cruz colocada sobre a credência, nos aproximávamos à igreja, enquanto eu, na frente dele, portava o missal apoiado no peito, com a abertura junto ao coração. Quando passávamos pela porta, o sacristão dava um toque de sineta: e, então, estávamos na igreja.

Nos primeiros bancos, havia duas ou três irmãs, a governanta do padre, algumas senhoras idosas. Nos bancos do outro lado da igreja, estava uma família mais ou menos numerosa, aquela que havia "ordenado", ou seja, feito celebrar a missa para o seu querido falecido no aniversário ou no 30º dia da sua morte. No fundo da igreja, havia algumas mulheres e alguns homens que gostavam daquele lugar distante, fora dos bancos: com uma certa ironia, eram chamados de "aqueles da soleira".

No total, eram entre 10 e 15 pessoas, não mais. Porém, principalmente naquele hora, muitas vezes ainda no escuro, pelo menos eu e o meu pároco tínhamos a consciência de estar coram Domino por todos os cristãos da cidade e em comunhão com toda a Igreja.

Tendo chegado ao altar, depois da genuflexão, se subia até ele para levar até lá o cálice e a patena, cobertos pelo véu, e para colocar o missal sobre o suporte. Depois, se descia, e a missa tinha início. "Introibo ad altare Dei", dizia o padre em voz baixa, e eu respondia: "Ad Deum quilaetificat iuventutem meam".

Então, eu e o padre rezávamos o Salmo 41 (42). Era um salmo com o qual eu me identificava de modo particular, porque a minha vida era dura e marcada também pelo sofrimento. "Quare tristis incedo?" (Sl 41 [42], 2), eu dizia a Deus e esperava nele apenas para que alegrasse a minha juventude.

Seguia-se a confissão dos pecados. O padre a fazia primeiro: "Confiteor Deo omnipotenti", e eu o absolvia: "Misereatur tui omnipotens Deus et, dimissis peccatistuis, perducat te ad vitam aeternam. Amen". Depois, eu me confessava, e ele me absolvia ou, melhor, absolvia todos os presentes: mas eles não podiam ouvir, porque esse diálogo ocorria em voz baixa e parecia se referir apenas a nós dois, o padre e eu. Nós dois éramos os protagonistas.

Nesse sentido, também é preciso dizer que, quando um padre vinha de fora para dizer missa na minha cidade, ele chamava a mim, que morava na frente da igreja e, assim, podia satisfazer a obrigação, porque era proibido de celebrar a missa sozinho (segundo a norma do cânone 813 § 1 do Código de Direito Canônico de 1917: "Sacerdos missam ne celebretsine ministro qui eidem inserviat et respondeat").

O padre me explicava: "As pessoas não sabem o latim, portanto não podem entender. Às pessoas basta 'assistir à missa' e rezar como sabem, com o rosário ou com outras orações". Na verdade, nem sequer se ousaria pensar no conceito de "assembleia", muito menos considerar que as pessoas ("povo de Deus" era uma expressão inconveniente) entendida como assembleia era sujeito da celebração.

Os fiéis, de fato, eram pensados e tratados como "presentes ausentes". Nem mesmo as fidelíssimas freiras tinham um messalino [pequeno missal] para seguir a celebração, enquanto eu tinha orgulho de possuir e de poder usar o do Caronti [referência ao monge beneditino Emanuele Caronti (1882-1966)], que me foi presenteado no dia da primeira comunhão.

Para a minha geração, o pequeno missal ainda era um livro decisivo para a formação cristã. Aprendia-se a missa, as vésperas, o ano litúrgico com esse precioso livro que sempre estava sempre em cima do criado-mudo, também como fonte das orações da manhã e da noite, além das várias orações para as diversas necessidades e devoções dos fiéis.

Havia um pequeno missal para todas as idades: depois do Caronti, aos 12 anos me foi presentado o Lefebvre [referência ao monge beneditino Gaspar Lefebvre (1880-1966)] e depois, aos 15, o Feder [referência ao padre jesuíta G. Feder]. Ainda hoje, ao lado da minha cama, à espera de um pequeno missal latim-italiano posterior à reforma litúrgica, conservo o do Feder para a oração pessoal.

A missa tridentina - Consagração e comunhão
Naqueles anos, estava presente um movimento litúrgico muito reconhecido pelo meu pároco. Principalmente depois que Pio XII, na encíclica Mediator Dei (1947), falara das crianças como ministrantes, coroinhas, estas haviam se tornado uma presença e um serviço ao qual se prestava muita atenção.

Todas as semanas, havia duas horas de ensino litúrgico e de provas para aprender a como servir a missa e as outras liturgias: o pároco era muito exigente, e devia-se aprender a postura, o modo de caminhar, de manter as mãos, de fazer a genuflexão, de se inclinar...

Esse ensinamento e o exercício cotidiano me davam uma consciência profunda e uma forte convicção do serviço ao altar, quase como se a missa fosse coisa do padre e minha: nós dois éramos os protagonistas, porque, como coroinha, eu era, de fato, um concelebrante. Ainda mais que o que podia ser cantado pelas pessoas era irrelevante para a validade da missa: só o padre era celebrante, e o que importava era que ele e o coroinha seguissem o rito segundo as rubricas e validamente (riteet valide). Os cantos ou as eventuais respostas do povo eram decorativos, mas não necessários.

O coroinha de então tinha que ser um rubricista especialista, um atento conhecedor das regras e das normas litúrgicas, um rapaz consciente e valoroso do seu serviço ao altar. A sua presença e as suas respostas ao padre eram essenciais para a celebração: era uma espécie de clérigo virtual.

Também não devemos esquecer que esse serviço estava consentido apenas aos homens, enquanto as mulheres absolutamente não podiam entrar no presbitério, muito menos colaborar com o desenvolvimento da celebração. O coroinha era, portanto, educado no espírito litúrgico e à execução ordenada, elegante, séria das funções litúrgicas das quais era investido.

Quando o padre subia ao altar, ele o beijava e, depois, invocava a piedade do Senhor: "Kyrie eleison", dizia ele, e eu respondia. Cruzavam-se assim, entre mim e ele, as invocações de piedade. Depois, havia a oração da coleta do dia, sempre em latim, seguida pela leitura da epístola. Todas as manhãs, sendo a missa "de morto", a leitura da epístola era a mesma, 1Ts 4, 13-18, que iniciava com as palavras: "Fratres, nolumus vosignorare de dormientibus…", assim como a leitura posterior retirada do evangelho segundo João (Jo 11, 21-27).

Eu estudei e aprendi muito cedo o latim, ainda aos oito anos, graças a quem me educou de modo tão refinado, especialmente depois da morte da minha mãe, e assim pude seguir todas as palavras sussurradas pelo padre. Eu também ouvia, porém, por trás das costas, o burburinho das pessoas que recitavam o rosário. De vez em quando, o padre se virava para as pessoas dizendo: "Dominus vobiscum", mas eu só eu que respondia: "Et cum spiritu tuo".

No entanto, em um certo ponto, quando, depois do prefácio às vezes cantado, eu proclamava o Sanctus e tocava três toques de sineta, eis que o burburinho da oração das pessoas cessava, e todos, ajoelhados, olhavam para o padre que, no altar, inclinado sobre a hóstia e sobre o cálice, pronunciava em voz baixíssima as palavras da consagração. Todos sabiam, em uma total obediência à "disciplina do arcano", que aquele era o momento culminante da missa, um momento que infundia temor: era o "santíssimo" da missa, em que absolutamente era preciso calar e prestar atenção. Era o fascinosum et tremendum, que se impunha também para o povo rude do interior!

Todos os olhares estavam fixos na coluna inclinada do padre, à espera de que aparecessem, por cima da sua cabeça, elevados ao alto pelas suas mãos, a hóstia e depois o cálice. Aqui também a sineta ritmava os movimentos do padre que se ajoelhava depois das elevações. Um toque contínuo da sineta que eu fazia girar com arte indicava o fim da consagração, do momento mais alto, do ápice da missa.

Ver a hóstia e o cálice, para muitos, era o elemento decisivo da missa, a máxima comunhão possível com o Senhor, porque quase ninguém, depois, acedia à comunhão do corpo do Senhor. A comunhão sacramental, de fato, era praticada por pouquíssimos. Era necessário comungar ao menos uma vez por ano – recitava o preceito da Igreja –, e ninguém, à parte das freiras e eu, sentiam a necessidade de comungar cotidianamente.

Também devemos dizer que a comunhão não era feita durante a missa: no momento da comunhão, só o padre comungava, depois a missa acabava. Depois de entrar novamente na sacristia e de ter deposto a casula, o padre, em alva e estola, voltava ao sacrário do altar, o abria, e nós comungávamos, ajoelhados no parapeito. Depois, fechava-se o tabernáculo sussurrando: "O sacrumconvivium…".

Essa era a missa dos dias de semana e cotidiana, que durava entre 20 e 25 minutos, no centro da qual havia "o silêncio canônico", o santíssimo momento da consagração e da elevação, um tempo em que o celebrante se imergia, mais ou menos de acordo com a sua devoção, em uma ação temorosa, adorante, mistérica. E com ele eu também, que, de perto, apenas três degraus mais abaixo, escutava e, assim, podia acompanhar as suas palavras sussurradas.

A missa tridentina – A pregação
É verdade que as pessoas "assistiam" e que essa era a sua participação: o que importava era a devoção, o exercício dos afetos, a atenção à presença de Deus, o temor pelo que acontecia sobre o altar. Não era dada a palavra do Senhor: o Antigo Testamento, durante a semana, era lido pouquíssimas vezes, as leituras da epístola e do evangelho eram – como se disse – sempre as mesmas, em ainda em latim (mais em geral, nas missas não "de morto", as leituras bíblicas eram muito escassas: textos quase que unicamente do evangelho segundo Mateus e admoestações tiradas do apóstolo Paulo).

Eu também me lembro que o meu pároco, considerado um inovador na liturgia e às vezes por isso criticado pelo bispo, a partir de 1951, me fazia ler em italiano, do parapeito, as leituras que ele, simultaneamente, lia em voz baixa em latim no altar. Então, as pessoas faziam silêncio, ouviam, como na elevação: eram os únicos momentos em que se suspendiam as devoções realizadas paralelamente com o desdobramento da missa.

No domingo, ao invés, as missas eram três: às 6h para as mulheres, que depois tinham que ir para casa para preparar o almoço; às 8h para os meninos, à qual se seguia a hora de catecismo; às 11h, a "missa grande", principalmente para os homens e os jovens.

Nessa última missa, em particular, havia os cantos: o coro da cidade executava em gregoriano a Missa de angelis. No início e no fim, cantavam-se hinos que eu recordo com verdadeira tristeza, por serem composições feias, com palavras carregadas de sentimentalismo, às vezes contendo elementos dramáticos.

Mas as pessoas – deve-se reconhecer – consideravam-nos como seus e os cantavam com paixão. Na "missa grande", não faltava a pregação, adaptada para o auditório: no primeiro pós-guerra, vinha um "josefino" de Asti ou um frei passionista do santuário das Rocche e, para não tornar a missa muito longa, ele pregava durante o desdobramento do rito.

Ele só parava no momento do Sanctus, ele também se ajoelhava na direção do altar e retomava o sermão depois do toque de sineta que se seguia à consagração. Tratava-se de pregações, não de homilias: era a ocasião para lembrar e repassar durante o ano a ética cristã, os mandamentos de Deus, os preceitos da Igreja.

Nos anos 1950 e 1960 do século passado, a pregação era uma oportunidade para a defesa da Igreja, para a luta contra o ateísmo, o comunismo e o desaparecimento da rigorosa moral sexual, em uma sociedade que perdia os seus parâmetros e conhecia uma nova cultura, cada vez menos tradicional e cada vez mais embebida de individualismo e de liberdade.

Muitos homens, durante a pregação, ficavam do lado de fora, formando pequenos grupos, e eu tinha que sair para forçá-los a entrar antes do ofertório, advertindo-os que, caso contrário, para eles, a missa não seria válida. O pároco me disse: "Vamos, força! Compelle intrare, faça-os entrar (Lc 14, 23)". Aqueles que entravam, saíam de novo para o pátio da igreja depois do Pai Nosso, dizendo com alívio: "Acabou!", e se queixavam da pregação resmungando.

(Continua amanhã à tarde)

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