terça-feira, 1 de maio de 2012

As religiosas dos EUA e as tensões desde o Vaticano II

"As freiras católicas me ensinam o que significa perseverar no ministério 
sem o benefício do poder institucional. #OQueAsFreirasSignificamParaMim" (Tweet daqui)

É quase instintivamente que se chega, ao tentar explicar o que está acontecendo hoje na Igreja Católica, a metáforas do mundo natural – tempestades, terremotos, mudanças sísmicas – para chegar à magnitude dos eventos.

A análise é do jornalista norte-americano Tom Roberts, publicada no sítio do jornal National Catholic Reporter, 24-04-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto, aqui reproduzida via IHU.


Procuramos os termos que explicam o que estamos experimentando: fenômenos além dos distúrbios comuns aos quais aprendemos a resistir de uma época para a outra. Assim como os sismólogos ou os climatologistas começam a unir os padrões ao longo do tempo, a construir uma megaimagem do que está acontecendo, nós também o fazemos.

Outra peça do quebra-cabeça acabou de se encaixar para nós com a divulgação pelo Vaticano, na semana passada, da "Avaliação Doutrinal da Leadership Conference of Women Religious (LCWR)".

O terremoto de 5,8 graus que atingiu a Costa Leste em agosto foi insignificante para os padrões da Costa Oeste, mas foi sentido a centenas de quilômetros do seu epicentro na Virgínia. Os geólogos explicaram que a crosta da Terra nessa parte do mundo é mais densa e menos perturbada e fraturada do que nas zonas sísmicas habituais, permitindo que as ondas sísmicas viajem mais longe do que viajariam, digamos, em Los Angeles ou em San Francisco.

De forma semelhante, as ondas de choque que emanam desde o Concílio Vaticano II (1962-1965), um encontro diferente de todos os precedentes em termos de tom, propósito e linguagem, reverberaram por toda a crosta relativamente imperturbável das presunções e da cultura de liderança da Igreja institucional. A avaliação das religiosas é o mais recente dos tremores secundários. Esse Concílio, popularmente conhecido como Vaticano II, não anunciou anátemas; não condenou heresias, como ocorreu em outros; não discorreu sobre o dogma nem estabeleceu novas linhas para quem está dentro e quem está fora da comunidade.

Ao invés disso, dizendo a questão amplamente, ele pediu que todos nós fôssemos às raízes de quem nós somos como povo de Deus e descubramos o que isso significa no mundo contemporâneo. E, embora essa seja uma história muito mais complexa – na verdade, um universo de histórias – para que possamos fazer justiça no espaço deste ensaio, podemos saber algumas coisas sobre o que aconteceu desde que começamos a sentir os rumores por baixo da crosta eclesiástica.

Uma das realidades que moldam a notícia dessa semana é que os bispos e as religiosas tomaram caminhos muito diferentes na sequência do Concílio, e isso estabeleceu uma dinâmica infeliz. Kenneth Briggs explica a crescente tensão entre bispos e religiosas no livro Double Crossed: Uncovering the Catholic Church's Betrayal of American Nuns.

As irmãs dos Estados Unidos, afirma ele, foram amplamente ignoradas nos relatos históricos do desenvolvimento da Igreja e da nação por causa de sua "exclusão das posições de poder dentro da Igreja. Sua subjugação a uma ordem clerical masculina não apenas as manteve fora dos olhos do público, mas também, em última análise, esmagaram seus esforços para se remodelarem ousada e criativamente".

Muitos dos problemas experimentados pelas religiosas no último meio século, argumenta, derivam da "recusa da hierarquia de cumprir a promessa de renovação" implícita nos documentos conciliares.

Rearranjo da paisagem
Os rumores que começaram a perturbar a crosta da Igreja em meados dos anos 1960 elevaram-se até um gigante deslocamento no fim da década com o debate sobre a Humanae Vitae. Pode parecer impactantemente inadequado retomar essa velha disputa de novo e neste contexto. Mas ela foi importante e continua sendo relevante. A paisagem católica foi rearranjada de uma forma grande e única.

Os leigos, nesse caso, liderados pela sua própria experiência e por teólogos proeminentes, disseram "não". Eles disseram que não aceitavam a proibição da Igreja sobre o uso da contracepção artificial. E assim foi. Pouco mudou desde então. Essa decisão, informal mas generalizada, criou bons tremores. A Igreja se manteve firme, menos, talvez, do que uma gárgula, aqui e ali. Deus permaneceu nos céus, e a vida continuou, mas uma nova intuição-chave permeava as pessoas nos bancos das igrejas. O temor da danação eterna por desconsiderar um ensinamento que não fazia sentido começou a evaporar como razão para obedecer.

A estudiosa da religião Phyllis Tickle diz que o cristianismo mundial está passando por uma de suas turbulências a cada 500 anos, quando antigas "carapaças" se racham e incrustações de hábito, de prática e de crença se desprendem. Em cada um desses ciclos, diz ela, ficamos nos perguntando: "Onde está a autoridade?".

A controvérsia sobre o controle de natalidade forçou essa questão de uma forma abrupta e nova no mundo católico. Percebe-se que, assim como os EUA estão tentando descobrir, no pós-11 de setembro, como o poder funciona em um mundo mais encolhido, interconectado e rompido pela tecnologia do que nunca, assim também os bispos estão tentando descobrir como funciona a sua autoridade em uma Igreja cada vez mais fraturada, onde as armadilhas e as presunções de uma monarquia totalmente masculina têm pouca influência sobre o imaginário católico contemporâneo. Poder e autoridade não funcionam mais como antes.

* * *

Na Igreja, não existe desafio maior para o poder hierárquico e para a forma tradicional de fazer as coisas do que as religiosas. Seguindo o Concílio, as mulheres fizeram o que elas pensavam que o encontro havia mandado: elas cavaram profundamente em suas próprias histórias, reviram seus documentos fundadores, refletiram longamente sobre as vidas e os exemplos de seus fundadores e fundadoras. Muitas saíram desse período de intensa oração e exame com conclusões surpreendentes. Uma delas era que a sua missão devia ser mais do que uma mão de obra barata para a hierarquia.

Outra delas foi que, tendo redescoberto os seus "carismas" originais, elas viram o seu trabalho levá-las para além dos muros dos claustros e dos conventos, rumo ao mundo mais amplo, particularmente para as suas margens e entre os pobres.

Um resultado inevitável de toda a introspecção e meditação sobre suas vidas, suas histórias e suas missões foi uma nova descoberta de si mesmas como mulheres. De fato, Briggs fala delas como uma espécie de pré-movimento feminista. As religiosas estavam realizando tarefas normalmente reservadas aos homens muito antes que muitas outras mulheres na sociedade. Elas dirigiam escolas e hospitais e outras instituições. Elas eram, escreve ele, "líderes destacadas a cargo de grandes e complexas estruturas. Elas eram, em suma, os CEOs de instituições antes que as mulheres [em geral] fossem CEOs de instituições".

Milhares delas obtiveram graus acadêmicos nos anos 1950 e levaram os seus novos conhecimentos e habilidades para uma ampla gama de novas profissões, diz Briggs, que escreve que o "total de doutorados conferidos às irmãs mais do que dobrou" entre os anos 1950 e 1970.

Durante o longo arco de sua história nos EUA, é fato que as religiosas construíram a Igreja. Nós não teríamos o sistema escolar católico sem elas. Nós não teríamos um sistema hospitalar sem elas. Nós não teríamos hoje uma presença católica em muitos das piores partes das nossas cidades sem elas. Nós não teríamos uma pastoral para os desalojados, indesejados e feridos sem elas. Em muitos casos, nós não teríamos quaisquer ministérios ou programas de educação em nossas paróquias e dioceses sem elas. E, em algumas das regiões do país pobres em padres, não teríamos paróquias sem elas.

"O chão está se movendo"
Nós somos, ao mesmo tempo, católicos, e os bispos são uma parte importante da nossa história. Por isso, devemos questionar: quem gostaria de ser bispo na Igreja de hoje? O chão está se movendo abaixo de nós de uma forma sem precedentes. Os antigos símbolos do poder estão desaparecendo. A residência baronial do bispo em Boston foi vendida para pagar o escândalo dos abusos sexuais. A da Filadélfia está à venda. A autoridade dos bispos em todas as partes está comprometida, sua estatura moral diminuiu, enquanto o mundo continua ouvindo, através de depoimentos em julgamentos e de documentação publicada, como a cultura da liderança da Igreja Católica ignorou o horror que estava sendo cometido contra as crianças, a fim de proteger seus padres e a reputação da cultura clerical.

Para a maioria dos homens ordenados vivos hoje, às vezes deve parecer como se nada é como era, como se aquilo ao qual eles se inscreveram décadas atrás desapareceu.

E isso inclui a forma como as religiosas atuam hoje. Isso inclui a forma como as religiosas pensam hoje, o fato de que elas se engajariam na reimaginação de Deus nas múltiplas manifestações humanas que refletem a sua imagem. De que elas responderiam a perguntas sobre o lugar das mulheres na Igreja, a ordenação de mulheres, como a Igreja trata os homossexuais – na direção contrária de toda a boa ordem e a comunidade que os homens haviam construído.

* * *

A avaliação doutrinal de oito páginas – uma acusação formal, na verdade – põe em causa as vidas, as motivações, a espiritualidade, a fidelidade, a teologia e as formas de abordar a Igreja e o mundo dos membros da Leadership Conference of Women Religious, uma organização que representa mais de 80% das religiosas dos EUA.

O documento está apropriadamente ancorado em citações papais sobre a necessidade de que "pessoas consagradas" tenham a total "adesão da mente e do coração ao magistério dos bispos", assim como fizeram seus fundadores e fundadoras. Como é o caso frequentemente, aqueles que possuem um maior risco de colapso nas presunções e de surgimento de questões pintam a história da Igreja em linhas nítidas e claras. Mas a realidade de alguns desses fundadores e fundadoras é muito mais irregular e envolta por muito mais lutas com a instituição e com os que detinham o poder do que referem as admoestações papais contemporâneas à obediência e à lealdade.

Há uma consequência para o fato de as religiosas terem sido as construtoras da Igreja, aqueles que estavam em campo, as representantes da Igreja onde a dor está, onde as pessoas estão realmente vivendo, sendo cuidadas e morrendo. Elas são conhecidas, recebem confiança e inspiram uma admiração e uma lealdade que não serão abandonadas nesta época de provações.

Essa não deveria ser uma competição entre homens e mulheres. Não deveria ser um teste de quem é mais importante para a Igreja. Não deveria ser uma questão de ganhar ou perder. Mas os homens forçaram isso até esse ponto.

Apoios
Nos últimos dias, as religiosas foram abordadas por católicos nas liturgias dominicais em todo o país com uma simples pergunta: o que podemos fazer para ajudar? Uma irmã me disse que as religiosas de outros países enviaram mensagens de solidariedade, perguntando se não há nada que elas possam fazer.

Em uma paróquia na Costa Leste, uma simpática mensagem de apoio às irmãs, vinda do púlpito, provocou aplausos altos e demorados. Certamente, não foi uma experiência singular. Leigos em todas as partes estão buscando quaisquer formas para apoiar as religiosas. Abaixo-assinados estão circulando no éter e atraindo milhares de assinaturas.

Eu aposto que a maioria dos bispos realmente não querem essa disputa neste momento. Com tudo aquilo que precisa de conserto na Igreja hoje – e com a quantidade de "coisas quebradas" pelas qual as lideranças são responsáveis –, agora não é o momento para ficar lançando farpas sobre quaisquer outros grupos, e certamente não sobre as irmãs.

As perguntas que as religiosas estão fazendo, os temas que elas discutem, as opiniões que elas se atrevem a expressar publicamente poderiam estar em desacordo com o que os bispos emanam a partir de sua experiência vivida, assim como de sua formação. Se os bispos querem reconhecer os fatos, essas são as mesmas questões e preocupações que ocupam a comunidade em geral, e não vão desaparecer magicamente.

Evolução em revoluções
Xavier Le Pichon, geofísico francês, é conhecido por ter construído um modelo abrangente de tectônica de placas, mas também por ter extraído do seu conhecimento da atividade das placas terrestres profundas intuições sobre o comportamento humano e a dinâmica da comunidade humana. Em um artigo, ele escreve: "Como eu sabia da minha própria experiência científica, as fraquezas, as imperfeições, as falhas facilitam a evolução de um sistema. Um sistema que é muito perfeito também é muito rígido, porque não precisa evoluir. Isso é verdade na política, é verdade dentro de uma sociedade, dentro das famílias, dentro da natureza". Eu acho que pode-se inferir, sem esticar o ponto indevidamente, que isso também vale para a Igreja Católica e para a sua eclesiologia.

Um sistema perfeito, escreve ele, "é um sistema fechado que só pode evoluir mediante uma grande comoção. A evolução ocorre através de revoluções". Em um caso, é a quebra de rochas rígidas; em outro, se poderia extrapolar, é a lenta desintegração dos sistemas eclesiais que se tornaram muito rígidos ou que descobrem que a sua utilidade foi transposta pelo tempo, pelas circunstâncias e pelas novas intuições.

A avaliação vaticana, de fato, deu início a uma "grande comoção". De uma forma que nenhuma campanha de nova evangelização jamais poderia, a crítica contra as irmãs unificou os católicos para se reagruparem por uma boa causa como católicos, porque eles são católicos. Eles farão tudo o que puderem para proteger as religiosas. Os bispos devem estar prontos para o contra-ataque violento de cartas e abaixo-assinados.

A hierarquia dos EUA está mirando a sua raiva contra as irmãs, mas os tremores que estão movendo a terra debaixo de seus pés têm pouco a ver com as mulheres que servem os pobres e se atrevem a fazer perguntas inquietantes.

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