segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Não me ''re-Concílio''. Uma viagem entre os católicos tradicionalistas

Concílio Vaticano II, setembro de 1962 (daqui)

"Fundamentalismo" – uma cunhagem do início do século XX do cristianismo batista do Sul dos EUA, que reivindicava a defesa dos seus próprios fundamentals. Na linguagem comum do século XXI, é considerado como um risco, um desvio ou uma natureza do Islã: mas que, na realidade, se reverbera sobre todos os universos religiosos – inclusive no católico – e que merece ao menos um rápido panorama.

A análise é Alberto Melloni, historiador da Igreja italiano, professor da Universidade de Modena-Reggio Emilia e diretor da Fundação João XXIII de Ciências Religiosas de Bolonha. O artigo foi publicado na revista dos jesuítas italianos, Popoli, 02-01-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto, aqui reproduzido via IHU.


Para quem olha de fora, poderia parecer um fenômeno novo. Certamente, é uma moda, mas de raízes antigas. O desprezo pela escuta do outro, o antagonismo para com o diálogo, a recusa da mediação em favor de uma identidade proclamada com a aspereza de quem não tem um centro de gravidade, o martelante elogio de si mesmo, a evocação de desígnios tenebrosos contra privilégios e arrogâncias, e, no fim, a pretensão de que tudo, até mesmo a violência, seja cumprida em nome de Deus.

Um fenômeno definido muitas vezes com o termo "fundamentalismo" – uma cunhagem do início do século XX do cristianismo batista do Sul dos EUA, que reivindicava a defesa dos seus próprios fundamentals – e considerado na linguagem comum do século XXI como um risco, um desvio ou uma natureza do Islã: mas que, na realidade, se reverbera sobre todos os universos religiosos e que merece ao menos um rápido panorama.

Quando o outro é uma ameaça
Em todos os lugares, de fato, a reivindicação de identidade e de exclusividade de um direito projeta uma ambígua fronteira com a violência. Quando ela aparece dentro do contexto cristão, como aconteceu neste verão [europeu], quando uma multidão fundamentalista massacrou jovens na ilha de Utoya, na Noruega, em nome de um "suprematismo" que se opõe à multiculturalidade, o Ocidente é quase unânime em observar – e não uma invenção – que o componente de delírio psicopatológico é claramente dominante.

Ao contrário, quando o criminoso psicopata é um muçulmano, essa mesma cultura e informação tende com gosto a generalizar, quase como se o Alcorão tivesse com a violência uma relação qualitativamente diferente da que está escrita nos livros e nas tradições das outras fés.

Ainda diferente é o caso do judaísmo, em que o nascimento do Estado de Israel e a transformação da utopia sionista em um sistema político permite que o nunca dormente antissemitismo europeu e o árabe de feitio mais jovem identifiquem neste ou naquele ato de guerra daquele país uma espécie de "prova" de uma inclinação bélica, denunciada com uma prontidão que as dezenas de milhares de mortes da recente guerra na Líbia não souberam merecer. E os cruzamentos entre autoabsolvição e acusação poderiam se multiplicar invertendo partes e quadrantes.

O fundamentalismo, de fato, é assim, em todos os lugares: cuida do seu próprio direito, apresentando-o como ameaçado pelo outro. Ou, melhor: fala de si mesmo – o religioso, cultural, étnico – como a vítima predestinada de um outro que deve ser neutralizado antes que seja tarde demais.

Sobre essa base, que – como nos ensinou o historiador e cientista político francês Jacques Sémelin – é o prenúncio de todos os grandes genocídios do século XX, nos predispomos a um choque que não prevê prisioneiros ou perdão. Foi assim no desesperado delírio de quem, como Oriana Fallaci, leu no próprio choque do 11 de setembro o emblema da transformação da Europa em uma Eurábia, que devia impedida, negando aquela visão do homem e de Deus que compõe a fé do Profeta. Foi assim, com efeitos muito mais sanguinários, naquelas mesquitas onde se temia a destruição e a profanação do Islã como programa do Grande Satã.

O Vaticano II como inimigo
Ao lado desses extremos que já aproaram em um identitarismo violento ou disponível a distinguir discriminando de acordo com as situações ("propter qualitatem personarum", diria o direito antigo) a titularidade dos direitos do homem, há outros fundamentalismos: prenúncios para alguns, contíguos para outros àqueles grupos. Fundamentalismos que se reconhecem na defesa intransigente do literalismo bíblico como explicação do mundo e instrumento de educação; ou que reivindicam a transformação em lei de normas da disciplina religiosa, seja porque são identificadas com a lei/direito da natureza, seja porque são consideradas parte da identidade cultural/nacional. Ou que conduzem uma batalha muito viva não contra quem é outro, mas contra quem não se identifica com essa batalha e, na sua qualidade de inimigo interno, é considerado o pior dos piores.

Esse tipo de fundamentalismo tem variações nada banais até no mundo cristão e no católico, onde habita assim como habita em toda parte. No seio católico romano, ele se torna hoje mais visível e pronunciado por um conjunto de fatores, que não seria difícil dividir em pensamentos, palavras e omissões. O fundamentalismo católico – usarei essa generalização para indicar o integrismo, o clericofascismo, o antissemitismo islamofóbico e o islamófilo, o tradicionalismo temperado, o tradicionalismo cismático, e assim por diante – não tem como inimigo uma corrente, um grupo, uma espiritualidade, uma encíclica, um livro, uma pessoa, mas nada menos do que um concílio, o Concílio Vaticano II.

Portanto, aquele órgão sobre o qual redunda o pleno e supremo poder sobre a Igreja, dizia o Código de Direito Canônico Pio-Beneditino de 1917: aquele que, em matéria de fé, expressa a infalibilidade da Igreja toda no crer e que, "Spiritu sancto legitime congregata", representa o encontro vivo da Igreja com o Vivente.

O Vaticano pertence, sem dúvida, ao conjunto dos grandes concílios: e, por isso, é normal que, a quase meio século da sua abertura, a sua recepção ainda esteja em curso, marcada por tensões e vitalidades que levaram tempo para se expressar e agiram em níveis diversos.

De baixo, como no caso da reforma litúrgica que recentrou sobre a Eucaristia a vida das Igrejas, o ministério e o próprio sacramento do episcopado, de um modo que pode ser contestado, mas não invertido: a esse respeito, é significativo que, no momento em que a suprema autoridade decide não só perdoar os cismáticos lefebvrianos, mas também comprazer com soberana indulgência as suas nostalgias por ritos que não conhecem, as comunidades da grande Igreja não sofrem nenhum contragolpe e continuam a sua vida litúrgica de antes.

Do lato, como no caso do diálogo inter-religioso: já que, quando o Concílio aceitou falar não só dos judeus, mas também fazer uma declaração sobre as religiões, pensava ter evitado com um subterfúgio a indisponibilidade dos bispos árabes a um documento que podia parecer favorável ao Estado de Israel (na época, ainda não reconhecidos pela Santa Sé). Na realidade, aparecendo a relação de intrínseca e assimétrica dependência do cristianismo pelo judaísmo à relação com as outras religiões, acabou fazendo de Israel o paradigma de toda alteridade, ou, melhor, o sacramento de toda alteridade. Assim, nos anos seguintes, pudemos assistir a eventos como a oração comum de Assis em 1986 – uma das pérolas pontificado de Wojtyla –, que explicitava com um convite a "necessidade" do outro do qual o cristianismo se sente portador. Ou ler palavras como as do irmão Christian de Chergé, prior do mosteiro de Tibihrine, na Argélia, assassinado como centenas de milhares de argelinos (sobretudo muçulmanos) na guerra civil: no testamento – escrito quando já estava claro que permanecer fiel à vocação implicava o martírio –, ele reconhecia ao seu futuro assassino que a morte lhe permitiria ver os muçulmanos com os olhos com os quais Deus os vê.

Uma leitura ideológica
É igualmente normal que, contra esse Concílio e a sua riqueza teológica, mobilizem-se grupos "reacionários" em sentido estrito: e que, por razões propagandísticas, sejam obrigados a ideologizar a realidade. Devem, portanto, acreditar ideologicamente que o Vaticano II – ao qual se deve a reabertura do contato com a grande tradição do Oriente e da Igreja do primeiro milênio – tenha posto em desuso uma "tradição" que muitas vezes nada mais é do que uma série de hábitos ou costumes. Ou devem defender que o Concílio Vaticano II é um concílio "modernizador" ("modernista", para os piores), que rebaixou a qualidade da disciplina do clero e do povo para comprazer uma cultura alheia como a da sociedade secular, quando está bem claro que a intenção conciliar é a de restaurar ao Evangelho a eloquência que tinha e não pode não ter.

Os mais refinados, ao contrário, agiram e agem em outros planos: a definição de que o Vaticano II se apresenta como como um concílio "pastoral" – uma qualificação tão complexa a ponto de ser impérvio à má-fé – é apresentada, por exemplo, como uma espécie de autocastração de uma cúpula que teria tido como alvo questões doutrinais. Ou ainda, a complexa hendíade de Bento XVI sobre a hermenêutica da reforma e da continuidade – reforma da vida, continuidade ontológica do sujeito Igreja, no discurso do papa – é mutilada em um elogio da continuidade sem bases históricas nem teológicas, mas que serve para vaticinar uma contraofensiva do catolicismo contra os seus inimigos de sempre, contra as outras confissões e as outras fés, contra tudo e contra todos.

Poder e tradição
A moda descrita sumariamente tem um destino que não depende só da sua consistência, embora modesta; e nem da tentativa (talvez não eficazmente monitorada) de anexar a ela as sutis distinções pontifícias e de arrancar de Ratzinger a sua biografia. Há, me parece, uma razão política mais profunda que está em ação. No mundo globalizado, onde as fisionomias se misturam e as paisagens mudam, todo poder busca se apresentar como guardião de uma tradição e paladino de um nacionalismo cultural em que possam ser aproveitados pertencimentos reais e conexões históricas efetivas, em um espírito de vingança a ser ativado quando necessário.

É uma moda que, em muitos países, é fácil sentir e pressentir, mas não é uma novidade. Quando Benito Mussolini se definia como "católico e anticristão", ele já se colocava na linha de uma mentalidade que chegaria, por essa via, ao colonialismo, à guerra, ao Holocausto: coisas, estas, que estavam à frente do Vaticano II e contra as quais o Concílio tinha tentado encontrar uma resposta na fidelidade ao Evangelho no tempo.

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