sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

''Na Igreja, também há quem trabalhe contra o Evangelho''

Fotomontagem: Isabel M. Martinez

Em tempos de confrontos entre cristãos e LGBTs por causa do discurso do papa (saiba mais aqui), é importante lembrar que nunca há só anjos nem só demônios em lugar nenhum (mais aqui). Se, por um lado, como adverte o autor deste texto, nem todos os que dizem "Senhor, Senhor" vivem de fato e anunciam com a própria vida a mensagem evangélica de amor irrestrito e acolhimento incondicional do Pai, por outro não se justifica julgar, condenar nem excluir aquele que, a meu ver, está "em erro" - e isso vale para cristãos e LGBTs. Afinal, errar, todos erramos. Vamos definir o outro pelo que ele faz ou tem de pior? Ou vamos buscar meios de dialogar, caminhar e crescer juntos, nos nossos erros e acertos, nas nossas diferenças e na humanidade que nos torna todos irmãos?

* * *

"Não basta se dizer crente em Cristo; é preciso se dizer e ser seguidor de Jesus na forma ditada pelo Evangelho que, antes de ser um livro quadriforme, é a vida do homem Jesus."

A opinião é do monge e teólogo italiano Enzo Bianchi, prior e fundador da Comunidade de Bose, em artigo publicado na revista Jesus, de janeiro de 2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto, aqui reproduzido via IHU, com grifos nossos.


Estes são os dias da memória do nascimento e da infância de Jesus, e os Evangelhos que nos querem narrar a vinda ao mundo do Filho de Deus, daquele que só Deus nos podia dar, de Jesus, Palavra do Pai feita carne (cf. Jo 1,14) por ação do Espírito de Deus, são obrigados, no entanto, a testemunhar que essa vinda, esse admirável dom se realizou no silêncio, na discrição e foi percebido só por alguns, por poucos fiéis.

Eram muitíssimos aqueles que se diziam fiéis e eram contados no número do povo de Deus, eram muitos aqueles que frequentavam o templo, as sinagogas e falavam do Deus uno e vivo. Porém, só pouquíssimos homens e mulheres, anônimos em sua maioria, souberam esperar realmente o Messias, souberam reconhecê-lo e acolhê-lo entre eles como um dom de Deus. Se não tivessem acolhido e olhado com esperança para esse menino, para Jesus, jamais saberíamos da sua existência nem conheceríamos os seus nomes: Zacarias, um sacerdote, e Isabel, sua esposa; José, um artesão, e Maria, sua esposa; Simeão, um velho sacerdote; Ana, uma velha e pobre viúva; alguns pastores de Belém.

Por outro lado, os profetas já tinham entendido e souberam ler a realidade e a verdade da comunidade do Senhor. Dentro do povo de Israel, o povo empírico que é humanamente legível como um povo de fiéis, o Senhor sente na verdade como suas testemunhas só um "resto", uma "porção" quase escondida que não se impõe, que não tem força, que não sabe o que significa vencer, que não é contada... São fiéis humildes, sobretudo, pobres até no coração, mansos que não têm ninguém em quem esperar, senão no Senhor; são fiéis que não buscam apoios mundanos, que não tecem relações para ter poder, que não sonham coisas grandes para além das suas forças (cf. Sl 131, 1): são os 'anawim, os pobres do Senhor.

Mas essa realidade não se refere apenas aos tempos da antiga aliança; refere-se também ao nosso hoje. Na nossa linguagem, muitas vezes abusamos da palavra "Igreja", que repetimos frequentemente de modo ambíguo, quando não até desviado e desviante. Porque a Igreja é uma realidade misteriosa, em que nós acreditamos, mas que não podemos verificar com segurança. A Igreja é a comunhão com os santos no céu daqueles que "o Senhor conhece como seus" (cf. 2Tim 2, 19; Nm 16, 5), como membros do seu corpo; é uma comunhão que não é mensurável (só o Senhor a "conta"!); é uma comunhão constituída por pecadores sempre perdoados, que conhecem o seu pecado e o oferecem ao Senhor como invocação de misericórdia; é uma comunhão daqueles que não simplesmente dizem acreditar em Deus e ser cristãos, mas buscam sincera e obstinadamente dar forma à sua vida segundo o Evangelho.

Sim, a Igreja é uma comunhão que conhece Jesus Cristo como Evangelho, não um Jesus fruto das suas próprias projeções, das suas próprias ideologias e, por isso, desfraldado como "o que temos de mais caro no cristianismo", mas sim o Jesus do Evangelho, que é o Evangelho feito carne, a carne de um homem que viveu humanamente. Não basta se dizer crente em Cristo; é preciso se dizer e ser seguidor de Jesus na forma ditada pelo Evangelho que, antes de ser um livro quadriforme, é a vida do homem Jesus.

Portanto, é preciso discernir quando se fala de Igreja. Não se trata de gostar de posições elitistas, de se alegrar sentindo-se entre poucos, nem de se sentir vítimas, como afirmavam muitos pregadores do século XIII: Duo sunt ecclesiae, "duas são as Igrejas," uma que persegue, a outra que é perseguida. Trata-se de não pensar em "vencer", em "se impor", mas sim em saber discernir, na medida do possível, um núcleo que olha para Cristo como para o Evangelho e, para o Evangelho, como para Cristo, sem distinções ou separações: um núcleo que ouve o Evangelho, que permite que a sua vida seja moldada pelo Evangelho; um núcleo de fiéis que, apesar de suas inadequações e contradições provocadas pelo Evangelho, quer que o Evangelho vença sobre si mesmos; um núcleo que conhece o fogo do Evangelho, aquele fogo que é redespertado por baixo das cinzas pelas quais às vezes parece estar coberto, todas as vezes que um homem ou uma mulher o busca.

Sim, o cristão deve saber que no povo de Deus também, na Igreja também, pode haver aqueles que trabalham contra o Evangelho, aqueles que se dizem cristãos e consideram o Evangelho uma utopia, que dizem crer em Deus em Cristo, mas que riem das palavras de Jesus, do seu Evangelho.

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