terça-feira, 13 de dezembro de 2011

Quando a Igreja muda de opinião


Reproduzimos a seguir reportagem de Gianni Valente publicada no Vatican Insider em 09-12-2011, sobre a missa em homenagem a Nossa Senhora de Guadalupe que se celebrou ontem em Roma. A tradução é de Benno Dischinger, aqui reproduzida via IHU, com grifos nossos. 


E que a Virgem de Guadalupe nos ilumine a todos no discernimento dos nossos rumos e caminhos através das sendas da história presente.

Segunda-feira à tarde, dia 12 de dezembro, solenidade da Virgem de Guadalupe, a Basílica de São Pedro se encherá com os sons e cores do catolicismo latino-americano. Bento XVI presidirá a missa com a intenção declarada de comemorar o segundo centenário dos processos de emancipação que tiveram lugar desde 1808 a 1824 e que culminaram com as proclamações de independência dos países da América Latina. Sob a cúpula de Miguel Ângelo soarão os cânticos litúrgicos da “missa crioula” do compositor argentino Ariel Ramírez. Ao dar início à celebração, as insígnias nacionais de todos os países latino-americanos, levadas por jovens embandeirados, atravessarão em procissão a nave da Basílica vaticana para render homenagem à Virgem de Guadalupe, colocada aos pés do altar.

Nos atuais comedidos ritmos da cidadela do Vaticano, a celebração programada para terça-feira é um evento singular anômalo por diversas razões. É a primeira vez que um papa celebra, de maneira solene, a festividade da Virgem de Guadalupe na Basílica construída sobre a tumba do apóstolo Pedro. E também parece não usual – sobretudo para a sensibilidade de Ratzinger – a celebração papal de uma liturgia eucarística declaradamente relacionada com a comemoração de acontecimentos da história mundana. Da liturgia participará um nutrido grupo de bispos – entre os quais pelo menos sete cardeais – chegados expressamente do outro lado do Atlântico, junto a ministros e embaixadores das nações latino-americanas. Um dos purpurados – provavelmente Nicolas de Jesús López Rodriguez, arcebispo de Santo Domingo e primado das Américas – dirigirá à Nossa Senhora de Guadalupe uma oração composta para a ocasião.

A celebração constitui uma evidente atualização da agenda de Ratzinger quanto às dinâmicas do continente no qual vivem 43% dos católicos do mundo. A Sé Apostólica, em sua instância mais alta, mostra-se em busca de ocasiões propícias para entrar novamente em conexão com o palpitante e multiforme catolicismo latino-americano. Durante a missa, Bento XVI também poderá anunciar oficialmente sua próxima viagem a Cuba e ao México, agendada para o final de março.

Implicitamente, a celebração de segunda-feira representa também uma tácita purificatio memoriae de um ponto controvertido na história das relações entre o papado romano e o catolicismo latino-americano. O atual sucessor de Pedro oferece sua contribuição a esses processos de libertação que há duzentos anos, durante sua progressiva materialização, foram excomungados de fato pelos papas de então, submetidos a pressões e chantagens por parte das “monarquias católicas” européias que já em 1773 haviam imposto a supressão da Companhia de Jesus. Pio VII, em obséquio aos desejos expressos pela monarquia espanhola e a Santa Aliança que a haviam libertado do domínio napoleônico, exigiu dos povos americanos, com a encíclica Etsi Longíssimo terrarum (1816), a obediência ao rei de Espanha Fernando VII de Bourbon.

E seu sucessor, Leão XIII, com o breve Etsi iam diu de 1824, havia corroborado a condenação papal às insurreições e expressado o desejo de que a supremacia espanhola retornasse aos territórios do outro lado do Atlântico, quando as guerras de emancipação já estavam chegando ao seu fim com um resultado favorável aos patriotas americanos. Sacerdotes e religiosas, que haviam desempenhado um papel-chave nas lutas latino-americanas de emancipação – começando pelos “pais da pátria” mexicana José Manuel Hidalgo e José María Morelos –, acusados de conivências maçônicas, porém conhecidos por todos como devotos apaixonados da Virgem de Guadalupe – haviam sido condenados por heresia e apostasia pelos tribunais eclesiásticos, antes de serem justiçados pelas tropas reais espanholas.

Conforme sublinhou o secretário da Pontifícia Comissão para a América Latina, Guzmán Carriquiry Lecour, em seu lúcido ensaio sobre as independências latino-americanas, naqueles difíceis momentos para o papado – que havia perdido o contato com as Igrejas locais – a escassa celeridade para captar os “sinais dos tempos” custou à catolicidade latino-americana uma ampla e dramática transição. Nas décadas que sucederam às proclamações de independência, a rede eclesial desses países – dioceses, paróquias, conventos, seminários – se mostrava numa condição de desmantelamento generalizado. Corria o risco de interromper-se completamente a continuidade no anúncio do Evangelho e na prática dos sacramentos. Então, a salvação de tudo foi o milagre da fé comunicada de mãe a filho, de avô a neto com a força de orações simples e de festas patronais custodiadas pela piedade popular. Até que, pouco a pouco, inclusive o papado – resistindo aos protestos e às chantagens espanholas e fazendo prevalecer o critério pastoral acima do pacto de poder com o Antigo Regime – começou a apoiar com decisão a reconstituição gradual do bispado nos novos países libertados da submissão às monarquias européias. “Os sucessores de São Pedro sempre têm sido nossos pais, porém a guerra nos havia deixado órfãos... Estes dignos pastores da Igreja e da República são nossos vínculos sagrados com o céu e a terra”: deste modo, o libertador Simon Bolívar acolheu, com o famoso “Brinde de Bogotá” as nomeações dos bispos de algumas das grandes cidades da América do Sul, efetuadas pelo Papa em 1827 (nomeações que desencadearam os furiosos protestos de Fernando VII).

Duzentos anos mais tarde, sem fanfarras nem clamores, sem entonações tardias do mea culpa nem auto-celebrações, Bento XVI lança nessa sucessão de acontecimentos do passado um olhar que pode ajudar a discernir inclusive os “sinais” do tempo presente. Tempos agitados, nos quais na América Latina, também para a Igreja, se abrem novos e surpreendentes cenários. Com a comemoração do segundo centenário das independências latino-americanas, o bispo de Roma corrobora implicitamente que o zelo mais elementar, no serviço ao sensus fidelium e às necessidades concertas das almas, é o único critério que pode transmitir à Sé apostólica a lucidez e a clarividência política necessárias para julgar as agitadas sucessões de acontecimentos da história.

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