domingo, 18 de dezembro de 2011

Perguntas frequentes: "O Antigo Testamento condena a homossexualidade?"

Perguntas frequentes

Neste final de ano, todos os domingos à tarde publicaremos algumas perguntas da seção "Perguntas frequentes" do site do Diversidade Católica. Você pode acessar a série completa no próprio site do DC, ou na tag "perguntas frequentes". :-)

"O Antigo Testamento condena a homossexualidade?"

A Bíblia traz algumas passagens que tratam da relação sexual entre pessoas do mesmo sexo. Antes de abordá-las, é necessário fazer uma escolha clara a respeito do tipo de interpretação que realizamos ao ler a Bíblia.

Todo cristão convicto de sua fé compreende a Sagrada Escritura como Palavra de Deus que revela, pela história da salvação presente no Antigo e no Novo Testamento, seu amor por toda a humanidade.

Por ser Palavra de Deus, a Bíblia pode dar a equivocada impressão de ser fruto de um ditado divino ou resultado de alguma experiência mística em que o homem tivesse sido mero instrumento para “receber” a Palavra e escrevê-la.

O testemunho da presença de Deus não foi recebido diretamente do céu. Não podemos perder de vista que, desde a experiência da libertação do povo no Egito, Deus se deixa encontrar nos acontecimentos humanos, na história, na vida concreta. As palavras são divinamente inspiradas, mas refletem também a cultura, a maneira de entender o mundo, a vida própria dos seres humanos de cada época.

Quem ignora que Deus nos fala através de fatos na história acaba por desconsiderar a diferença entre a cultura da época do texto e a compreensão atual das coisas.

Mas se Deus nos fala em linguagem humana, em épocas específicas com formas próprias de entendimento. Para compreender de verdade o que ele disse então e permanecerá sempre válido, será preciso entender aquela cultura para decifrarmos a mensagem divina ali presente. O divino, o eterno sempre vem unido, assumido pelo humano, pelo transitório, numa síntese que se dá no mesmo sentido da encarnação do Filho de Deus.

O método mais usado pela Teologia para tal é o chamado Histórico-crítico. Este método foi reconhecido pela Igreja como sendo eficaz para se chegar, por meio da investigação da cultura de cada época presente na Bíblia ao que, de fato, o autor quis afirmar sendo isto sim a palavra divina*.

Desta forma, não basta ler a Bíblia para compreender o que Deus nos está revelando. É preciso interpretar as entrelinhas, muitas vezes imperceptíveis à primeira vista, quando o texto traz fortes marcas culturais de uma época.

Colocadas estas importantes questões que dizem respeito à interpretação da Bíblia, voltemos à pergunta colocada.
Os textos mais usados para basear uma possível condenação da homossexualidade na Bíblia estão nos livros do Gênesis (Gn 19, 1-11), Levítico (Lv 18,22 e 20, 13), Juízes (Jz 19,22-30) e na carta de São Paulo aos Romanos (Rm 1,26-27 – veja a pergunta 5) .

Vamos analisar, de acordo com a interpretação não-fundamentalista, aquela que leva em conta o contexto cultural da época, cada um dos textos do Antigo Testamento mencionados acima.

• Gn 19, 1-11: Episódio que trata da destruição de Sodoma e Gomorra. Lot acolhe estrangeiros em sua casa: na verdade, são anjos de Deus. Os homens da cidade vão até à casa de Lot, pedindo que os entreguem a eles para que mantenham relações sexuais. Lot se nega a fazê-lo porque os homens estrangeiros se “acham debaixo da proteção do seu teto” (versículo 8). Ou seja, o crime de Sodoma e Gomorra foi violar o sagrado costume da hospitalidade. Jó não se recusa a entregar seus convidados aos homens da cidade, alegando a imoralidade de tais relações, mas porque estavam eles em sua casa. Era seu dever, portanto protegê-los do que seria um possível estupro grupal masculino**.
• Jz 19, 22-30: Aqui, o que também impede que o homem hospedado na casa do idoso tenha relações sexuais forçadas com os homens do lugar é a infração do dever da hospitalidade, como se pode perceber pelas palavras do dono da casa: “Não sejam tão perversos. Já que esse homem é meu hóspede não cometam essa loucura”. (v. 23).
• Lv 18, 22 e 20, 13: A proibição de “deitar-se com um homem como se faz com uma mulher” está numa parte mais ampla sobre relações sexuais ilícitas (Lv 18, 1-30) do livro do Levítico. O versículo 13 do capítulo 20 parece ser um desenvolvimento do preceito de Lv 18,22.

O livro do Levítico é um dos mais antigos da Bíblia. Trata-se de uma reunião das leis surgidas ao longo dos primeiros anos da história de Israel como povo, após a libertação do Egito.

Neste contexto, Israel é uma nação jovem que ocupa território vizinho a outros povos que não seguem Javé. É preciso, antes de tudo, fazer com que Israel assuma uma identidade própria. É preciso que todo descendente de judeu libertado no Egito entenda que tem uma nacionalidade, uma terra e um Deus que o distinguem dos outros povos. Daí Deus exigir: “Não procedam como se procede no Egito, onde vocês moraram, nem como se procede na terra de Canaã, para onde os estou levando. Não sigam as suas práticas” (Lv 18, 3). Esta é a razão da longa lista de pecados sexuais no texto. Ela é uma maneira de reafirmar a pertença do judeu ao povo de Israel e distingui-lo de outras nações.

Para nós pode parecer estranho que a construção da identidade nacional passe por algo tão íntimo quanto a vida sexual. E aqui está uma importante diferença entre a sexualidade como é entendida em nossos dias e como era vista na época do livro do Levítico. Diferença essa que, esclarecida, nos ajudará a compreender a aplicação de tal texto para os nossos dias.

Hoje em dia, se tem plena noção de que cada pessoa é um indivíduo com consciência pessoal e interioridade própria; com um “eu” que o torna diverso de todas as outras criaturas na face da Terra. Esse “eu” é o lugar da “profunda interioridade” de onde surge o que cada um tem de mais específico, de mais próprio. O “eu” é a real identidade de cada um de nós.

Se, para nós, é claro que a consciência e a interioridade são o que determinam o “eu” de cada um e, por isto, em última instância, são o que determinam a sua pessoa, o mesmo não acontece no Antigo Testamento. O conceito mesmo de “pessoa” vai surgir muito depois, já no cristianismo.

Os primeiros textos do Antigo Testamento nem mesmo reconhecem a individualidade de cada um, mas somente o grupo , o clã. É por isso que tantas vezes se encontra nesta parte da Bíblia a afirmação de que Deus castiga os pecados dos pais nos filhos (Ex 20,5; Nm 14,18; Dt 5,9; etc.). Se para nós parece injusto – já que cada um deve arcar com a conseqüência dos próprios atos –, só é injusto porque entendemos que cada um, os filhos e os pais, por mais que sejam próximos, são indivíduos distintos. Já que as culturas do Antigo Testamento não tinham tão evidente a noção da individualidade, pensava-se em termos de clã. Daí não ser estranho que pessoas do mesmo grupo tivessem a mesma sorte.

Há uma diferença fundamental entre a nossa compreensão de pessoa e aquela presente nos primeiros textos do Antigo Testamento. Por faltar a noção de individualidade, o papel que o ser humano ocupava na sociedade era a função que ele desempenhava no grupo. Ou seja, o “eu” não vinha da consciência, da interioridade, mas do exterior: a pessoa era aquilo que ela fazia.
Sem conhecer a interioridade que origina o “eu” pessoal, a identidade das pessoas vinha da função que exerciam na sociedade. Um exemplo simplório de como o papel social acaba, em algum nível, originando identidade é o “Seu Antônio da padaria”, o “João Pedreiro”, etc.

Sendo assim, no Antigo Testamento, não havia lugar para se compreender a homossexualidade da maneira como hoje a entendemos. Se era o “exterior” que determinava o “interior” da pessoa, o fato de nascer “homem” ou “mulher” era o suficiente para determinar que tipo de relações iriam ser construídas.

A compreensão de pessoa da época não dava espaço a qualquer manifestação que partisse de afetividade ou de um “eu” pessoal distinto do papel na sociedade, já que, como vimos, era o papel social que determinava a pessoa. Compreendendo-se este raciocínio, entendemos também como outras manifestações que desafiam o papel social e pressupõem uma atitude mais pessoal não eram entendidos no Antigo Testamento, como o celibato. Se o homem e a mulher têm capacidade reprodutora, o que a sociedade esperava deles é que se reproduzissem.

Desta forma, a condenação presente no livro do Levítico de um homem “deitar-se com um outro como se faz com uma mulher” serve tanto para ressaltar a identidade do judeu como membro do povo israelita – já que outros povos praticavam tais atos –, quanto para dar a identidade específica a cada um dentro do povo de Israel, identidade essa formada não a partir da consciência pessoal, mas dos papéis desempenhados na sociedade.

Bem diferente é a questão da homossexualidade nos dias de hoje. Não é mais a sociedade, em última instância, que determina o indivíduo (ainda que tenha um importante papel no processo), mas a sua própria consciência. Além disso, as sociedades atuais se encontram em outros estágios de desenvolvimento, onde são possíveis papéis sociais bem mais flexíveis.

* Na Constituição Dogmática Dei Verbum nº 12 e no Documento “A Interpretação da Bíblia na Igreja” temos algumas passagens que reconhecem a contribuição do método Histórico-crítico.


** Ver JUNG, Patrícia B. ; CORAY. Joseph Andrew (Org.) Diversidade Sexual e Catolicismo. Ed. Loyola. P. 141.

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