quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

"Já sofri muito por ser o que sou. Chega: sou um filho amado de Deus"


Percebemos que a ideia de conciliar nossas identidades de gays e católicos muitas vezes causa um certo estranhamento ou mesmo desconforto em algumas pessoas - e, nesse caso, não só os "fundamentalistas", mas também em muitos gays não-religiosos. Em vista disso, iniciamos há algumas semanas uma série de depoimentos aqui no blog, que serão publicados sempre às quintas-feiras, às 15h, de algumas das pessoas que frequentam as reuniões e atividades do Diversidade Católica e que se dispuseram a compartilhar, com os leitores do blog, um pouco de suas histórias e suas vivências como gays e católicos que são.

O depoimento desta semana tem uma peculiaridade: foi enviado para nós não por um membro do grupo do Rio, mas por um amigo virtual, uma das pessoas que entraram em contato conosco interessadas em iniciar um grupo de católicos gays em Belo Horizonte e nos pediram ajuda para estruturá-lo. Os grifos são do autor.

A série pode ser acessada através da tag "gay e cristão".

A cada um deles, sempre, nosso muito obrigado. :-)


Eu “amei“ em toda a minha vida, até hoje, quatro pessoas. Duas do sexo masculino e duas do sexo feminino. Somente depois de uma longa caminhada, consegui descentrar o amor romântico a fim de buscar o amor real: uma mescla de amor Eros, amor Filia e amor Ágape, além de muito suor e lapidação no cotidiano de uma relação. Tornei-me uma pessoa melhor.

Sou intenso e faço a experiência de Deus da Meditação à Teologia da Libertação. A espiritualidade, o fato de gostar de gente, literatura, música, psicanálise e a paixão por viagens contrapuseram e ressignificaram intensos sofrimentos, perdas, abuso sexual e bullying na infância.

Somente aos 42 anos, encaro a minha orientação sexual não convencional como dom de Deus. Já sofri muito por ser o que sou. Chega: sou um filho amado de Deus: Ele me ama e ponto.

Existem sete bilhões de pessoas no planeta terra. Existem sete bilhões de singularidades. Portanto, existem sete bilhões de sexualidades, porque ninguém é igual a ninguém. Hetero, bi, homo, transexual... São balizamentos importantes, mas essas denominações não podem aprisionar a vastidão do mistério que pulsa em cada coração humano: buscamos sempre Deus no outro, nossa verdadeira sede é Dele e é essa a nossa maior e melhor realidade.

Uma amiga íntima, freira, falou-me um dia: “Marcos, Deus é amor, a pessoa humana é que é um mistério...” Pura sabedoria, verdade verdadeira. Assim...

Aos 07 anos, amei pela primeira vez: uma menina de minha sala, dois anos mais velha que eu. Ela era muito feia, mas eu adorava Gláucia: a menina mais charmosa que já conheci. Ela usava óculos fundo de garrafa, tinha uma pinta preta e grande no rosto e era zarolha. A sua vivacidade, jeito de falar, dançar e ser encantavam-me. E ela levava bombom de cereja para mim e batia nos meninos que me insultavam na escola. Eu andava com a foto dela na minha merendeira e cheguei ao ápice da paixão ao entregar meu ovo de páscoa inteiro para ela, que quase desmaiou de alegria. E eu de tristeza no dia em que, ao chegar à escola, sua carteira estava vazia. E vazia para sempre. A família mudou-se para outro país para aproveitar uma excelente oportunidade de trabalho para seu pai. Ah, que dor eu sofri!

Aos 13 anos, vivi um amor platônico, experiência que todo mundo deveria ter, porque além de ser uma delícia, prepara, delicadamente, o adolescente para o namoro real. Tiago era o nome dele. Ele tinha 16 anos e um dos adolescentes mais bonitos que conheci em minha vida. Ele era o “cara”: quase todas as meninas queriam namorá-lo. E ele namorou muitas garotas, mas, coetaneamente, por uns bons anos e todos os dias, ele quase furou com sua moto, o asfalto da rua onde morava. Eu ficava no jardim, meio que escondido por entre as árvores e o coração disparado. Seus olhos negros atravessaram todas as barreiras de censura e de preconceito existentes em mim e iluminaram meu ser por inteiro. Eu não precisava de mais nada, sentia-me “pleno”, podia morrer. É engraçado: ao rememorar essas cenas, não posso deixar de falar que jamais tive qualquer fantasia sexual genital com ele. O fato de ele existir e o fato de poder todas as manhãs, na escola, vê-lo e ser visto, de ser o seu amor proibido, enchia-me de um tipo de alegria que jamais senti novamente. Nunca comunicamo-nos por palavras. Elas, hoje penso, quebrariam o encanto. Somente sorrisos, olhares e as iniciais de nossos nomes, de maneira clandestina escritos nas árvores de nosso colégio. Ao mesmo tempo, eu era coroinha e amigo do padre do bairro: nós jogávamos peteca em dupla e ele era extremamente amigo: deu-me um belo presépio em um dos natais e ensinou-me que Jesus nasce no coração de todos nós em todos os momentos de nossas vidas. Sinto que Deus enviou-me Tiago e encheu-me de uma pureza de estado de alma, que a turbulência de minha fase posterior, dos 17 aos 21 anos, não conseguiu apagar. Nessa etapa de minha vida, afastei-me da Igreja e experimentei vários namoricos e relacionamentos sexuais - corri sério risco de vida ou de contrair AIDS – até dar-me conta de que não tinha coragem e maturidade de me entregar a ninguém. Eu precisei de mais dois anos para que a homofobia silenciosa e arrasadora começasse a ser transformada em fonte de amor. Eu precisei fazer psicanálise por uns bons anos e essa foi essencial no meu processo de amadurecimento humano. Quanta dor, quanta busca: tocar o dedo nas feridas, enfrentar o inconsciente, as sombras: nossas mestras companheiras, como nos ensinam os padres do deserto dos primeiros séculos de cristianismo: “O céu começa em você “ ensinou-me o passar dos anos e o monge beneditino Anselm Grün, autor do belo livro com esse nome.

Em uma segunda-feira ao meio-dia em ponto, aos 25 anos, conheci a paixão de minha vida: Marco Túlio e três anos de relacionamento que valeram por trinta. Túlio acabava de sair do seminário, onde viveu por muitos anos. Túlio: homem de inteligência viva e ousada, que açulou minha consciência crítica, opção preferencial pelos excluídos, cidadania, direitos humanos. Através dele pude “Beber do próprio poço” com Gustavo Gutierrez; ser atravessado pela obra de Theilhard de Chardin; saborear “Os sacramentos da vida e a vida dos sacramentos”, “Vida para além da morte”, “São Francisco de Assis: ternura e vigor” e tantos outros magníficos livros de Leonardo Boff; tive “Fome de beleza e de pão”, aprendi o “Catecismo Popular” e vivi o “Batismo de Sangue” de um de nossos maiores escritores e profetas modernos, que é Frei Betto. Através desse relacionamento, comecei a participar de pastorais sociais, acompanhei movimentos reivindicativos em portas de fábricas, conheci a realidade dos nossos irmãos das favelas, fiz retiros espirituais com prostitutas e a experiência do sexo como expressão do amor entre dois homens. Nós dormíamos entre livros de Adélia Prado, Clarice Lispector e discos de Maria Bethânia, Almir Sater, Renato Teixeira, Simon e Garfunkel. Nós tocávamos violão e ele tinha uma voz linda. Viajávamos. Fazíamos amor nas estradas desertas e o céu estrelado, íamos a cachoeiras pouco exploradas e festas simples de interior... Como abominar esse amor gerador de tantos frutos e poucos ramos secos? Quem ousa julgar e pisar no solo sagrado de uma relação bem diferente daquilo que o sociólogo polaco Zigmunt Bauman denomina de “amor líquido“ resultado de uma sociedade em que tudo é superficial, artificial, efêmero, “líquido” que se esvai ao se deparar com a concretude do mundo atual de valores distorcidos? Somente a ignorância e o medo, mãe e pai de todo preconceito podem sustentá-lo. E é por isso que precisamos dar testemunho de nossas vidas, buscas e direitos autênticos.

29 a 40 anos
Conheci a mãe de meu maior presente de Deus: meu filho. Uma mulher extraordinária em muitos aspectos, que cuidou de mim com devoção, em momentos delicados de minha vida. E confesso: Marco Túlio, apesar das inúmeras qualidades, jamais teria dado conta de sustentar as barras pelas quais tivemos que enfrentar juntos. Não pelo fato de ser homem, mas devido à sua personalidade imatura para os momentos mais difíceis de um relacionamento. Devido ao fato de eu saber claramente sobre a predominância de minha orientação homossexual, jamais imaginei namorar e me casar com uma mulher... Mas com o desenrolar da psicanálise, minha dimensão heterossexual bloqueada e maciçamente reprimida veio à tona e eu fiquei completamente envolvido por um desejo e por um amor que nunca imaginei que me habitasse. Apavorado e apaixonado, contei tudo para ela, que linda, delicada, sensível e paciente, acolheu-me totalmente. Simplesmente aceitou-me do jeito que sou. Eu não resisti e vivi o mais profundo relacionamento de minha vida: desejo, afinidade, cumplicidade, fidelidade e filho.

Porém, jamais deixei de ser homossexual e sempre, nos sonhos apareciam os desejos e na vida de vigília uma angústia muito forte, um peso excessivo, algo muito ruim que sempre compartilhei com ela. Até que, por fim, ela foi, mais uma vez, um anjo em minha vida ao pedir a separação. Ela com muito sofrimento e de maneira delicada apontou-me que o excesso de peso era o meu ressentimento inconsciente com minha posição subjetiva no mundo: minha posição no casamento convencional. Era verdade. Parte da verdade, pois sofri as piores dores de minha vida. Óbvio que ela também apresentou limitações que ajudaram a colocar fim ao casamento. Mas, cheguei a sentir que não viveria sem ela. Separamo-nos. Isso aconteceu no início de 2009 e por dois anos fiquei muito mal. As orações diárias, a bondade de Deus, o amor de minha família e amigos e o tempo devolveram-me a alegria de viver.

Hoje, aos 42 anos, sinto-me livre para amar novamente e acredito firmemente que será um homem o meu companheiro. Porém, o maior aprendizado que fiz após essas experiências de amor e de vida é, ao mesmo tempo, o meu núcleo gerador de confiança, serenidade e alegria: independentemente do amor que eu for viver, o meu e o nosso maior caso de amor precisa sempre ser com Deus. Jesus é o amado insubstituível. somente Ele é o “cara”. E esse caso de amor é, podemos falar com toda certeza, o que nos sustenta e nos fortalece para que possamos dar o melhor de nós, aconteça o que acontecer.

Experimente desde o raiar do dia, todos os dias, louvar, amar e servir à Trindade. E você vai sentir uma transformação profunda no seu ser e na sua vida.

Com carinho, a todos vocês.

- Marcos, novembro de 2011

5 comentários:

Claudinei Silva disse...

Um testemunho muito aniador e acalentador! Tamém vivi relacionamentos heteros e homos, hoje minha orientação está focada na homossexualidade. Tambem me casei, tive dois filhos, aos quais amo incontestavelmente, mas não vivia plenamente. Hoje, embora tenha tido algumas experiências não muito agradáveis, uma em especial, na qual me entreguei de corpo e alma e tive uma grande decepção, ainda assim desejo um companheiro para seguir em frente nesta vida. Deus está presente em mim sempre, alias é centro de tudo em minha vida, e embora eu esteja um tanto afastado da Igreja (Católica) nunca deixo minhas orações.

Claudinei Silva disse...

Perfeito!

Léo Candido disse...

Ainda me considero novo para entender a plenitude do amor. já me relacionei com homens e mulheres e ando afastado da igreja. Porém ler depoimento deste tipo sempre me motivam a aproximação com Deus independente do da pessoa com quem compartilho minha vida.

Anderson disse...

Que testemunho lindo! Quando eu, aqui com os meus 31 anos acho que não vou conseguir amar ninguém na plenitude do amor e na sabedoria de Deus vem estas linhas de uma história incrível me confortar. Vou a missa daqui a pouco e vou rezar por todos nós que sofremos a dor do amor e que servimos sem dor!

Rodolfo Viana disse...

Que palavras cheia de vida e humanidade...

:)

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