segunda-feira, 17 de outubro de 2011

O sacrifício cristão e o Vaticano II

Escultura: Michael Murphy

Com o Vaticano II, passamos imperceptivelmente da angústia do Dies irae para o “Hino à alegria”, de uma prática religiosa disciplinar na expectativa preocupada da cólera divina, a uma prática da fé em Cristo que leva a cumprimento a cristicidade (santidade) do humano e, por isso, o liberta do pecado.

A opinião é de Alain Weidert, publicada no jornal La Croix, 08-10-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto, aqui reproduzida via IHU, com grifos nossos.

Eis o texto.


A ruptura com a Fraternidade Sacerdotal São Pio X será reabsorvida? Formalmente, talvez, mas absolutamente não com relação aos temas de fundo! Persiste um antagonismo teológico crucial, jamais abertamente explicitado. Esse "não dito" refere-se à própria natureza da salvação, da redenção, ou seja, do tipo das relações Deus-homem.

O epicentro de todos os dissensos invocados (liturgia, sacerdócio comum, colegialidade, ecumenismo...) nada mais é do que o sacrifício de Cristo. A salvação em Jesus Cristo passa, sim ou não, por um sacrifício de reparação, de expiação, de satisfação ou, para usar uma palavra apreciada, por um sacrifício propiciatório?

Os lefebvrianos, em particular, são contrários ao conteúdo de um livro publicado em 1968 e republicado várias vezes até 2010 [1]. O seu autor, o futuro Papa Bento XVI, desenvolve nele um modo de entender o sacrifício de Cristo e, portanto, de Deus, nos antípodas da posição sacrificial e da luta ideológica integralista [2].

Joseph Ratzinger lembra acima de tudo a concepção cristã atual da redenção, que se baseia naquela que se chama de teoria da satisfação, elaborada por Anselmo de Canterbury. Para Anselmo, o pecado do homem era dirigido contra Deus, e, como Deus é infinito, a ofensa que lhe foi feita tem um peso infinito. E, como a humanidade é incapaz de fornecer uma reparação infinita, é o próprio Deus que acaba com a injustiça no sacrifício do Filho, que fornece a satisfação necessária.

Sem rejeitar todas as intuições de Anselmo, Joseph Ratzinger só pode constatar que nos é sempre mais difícil admitir uma teoria tão cruel que situa a cruz dentro de um mecanismo de direito lesado e restabelecido. Alguns textos devocionais parecem até sugerir, escreve ele, que o Deus da fé cristã exija um sacrifício humano, o do seu próprio Filho.

"Essa imagem é tão difundida quanto equivocada", afirma. A cruz não é a obra de reconciliação que a humanidade ofereceria a um Deus carrancudo, mas sim a expressão do amor insensato de Deus, que, no Homem, se oferece totalmente.

O sacrifício cristão não consiste em dar a Deus uma coisa que ele não possuiria sem nós, mas sim em nos tornarmos totalmente receptivos e em deixar-nos tomar totalmente por Ele. "Deixar Deus agir em nós, eis o sacrifício cristão", escreve Ratzinger. Para ele, o culto cristão não consiste na oferta de coisas, nem em uma forma de destruição, como "repete-se incessantemente nas teorias do sacrifício da Missa do século XVI".

O que importa, na cruz, escreve o teólogo, não é um acúmulo de sofrimentos físicos, como se o valor de redenção da cruz consistisse na soma máxima possível de tormentos. Depois, ele se pergunta: "Como Deus poderia obter prazer dos tormentos da sua criatura, até do seu próprio Filho e considerá-los como o valor a ser fornecido conquistar a reconciliação?". Para ele, a Bíblia e a fé cristã autêntica estão longe de tais ideias. Se fosse de outra forma, continua, "na cruz, os torturadores teriam sido os verdadeiros sacerdotes, teriam sido eles que, provocando o sofrimento, teriam oferecido o sacrifício".

Não é talvez uma ideia indigna representar um Deus que exige a imolação do Filho para aplacar a sua cólera? A essa pergunta, o futuro papa responde: "De fato, Deus não poderia ser concebido desse modo. Uma tal noção de Deus não tem nada a ver com a ideia de Deus do Novo Testamento".

Com essa declaração, ele repensa mais corretamente a ideia do sacrifício cristão, assim como a empatia natural, indefectível e sem condições de Deus para com o homem. Mas com essa configuração, ele também levanta a condenação por parte dos integralistas do famoso espírito do Concílio, da sua cristologia de reequilíbrio entre o homem e Deus

Com o Vaticano II, passamos imperceptivelmente da angústia do Dies irae para o “Hino à alegria”, de uma prática religiosa disciplinar, na expectativa preocupada da cólera divina, a uma prática da fé em Cristo que leva a cumprimento a cristicidade (santidade) do humano e, por isso, o liberta do pecado.

Quando nos sacrificamos, não é mais para sermos salvos ou para salvar almas, mas porque se realiza a gratuidade da salvação, as "Núpcias em Cristo", do humano e do divino. O espírito crístico desse Concílio excepcional não deterá tão cedo a sua obra pastoral de conversão.


Para se aprofundar neste tema, sugerimos:
A Cruz: suplício ou esperança?
Escândalo e loucura

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Notas do autor:
1) Joseph Ratzinger, La fede cristiana, ieri e oggi.
2) Ver por exemplo Lettre à nos frères prêtres, n° 45, março de 2010; Dom Tissier de Mallerais, L'étrange théologie di Benoit XVI, Ed. Le Sel de la Terre, 2010.

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