segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Pão para os cachorrinhos


Uma bela reflexão sobre o trecho evangélico da liturgia de ontem pela pastora batista italiana Lidia Maggi, sobre o papel de uma mulher em "forçar" Jesus a ampliar os seus próprios horizontes.

O artigo foi publicado na revista Rocca, 15-09-2007. A tradução é de Moisés Sbardelotto, aqui reproduzida via IHU com grifos nossos.

Eis o texto.


Na memória da Igreja, permanecerá a recordação de um encontro que ajudou o Messias a pôr o foco com maior clareza na sua vocação. Será lembrada a fadiga desse diálogo, marcado por endurecimentos e incompreensões; confronto verdadeiro, no entanto, em que os interlocutores, e Jesus em primeiro lugar, se põem em jogo até o fim para dele sair radicalmente mudados.

Não será lembrado o nome dessa mulher estrangeira, grega e pagã, que, movida por um inabalável amor materno, ousou se apresentar diante do Filho de Davi. Mas a sua fé indomável, a sua firmeza, a inteligência com a qual soube se pôr diante do Messias, se tornarão evangelho. Ela não será nem censurada a imagem de um Messias que se esforça para acolher as razões do outro, que chega até à ofensa, comparando as pessoas pagãs com animais.

Para fazer com que se compreenda plenamente o amor de um Deus que transborda as fronteiras confessionais, pode ser mais eficaz o efeito de choque desse episódio do que uma afirmação genérica e benévola sobre Deus, pai de todos. Essa história tem a força de uma parábola. Desloca convicções, abre novas perspectivas, levanta questões e espera respostas de quem ouve.

Uma mulher pede a ajuda a Jesus, e este a rejeita com palavras duras. Ela insiste e discute com magistral sabedoria as afirmações do mestre. A fineza dos argumentos leva Jesus a rever a sua posição e a conceder a cura invocada. O escândalo desse relato é que as palavras duras de Jesus não são dirigidas a religiosos e poderosos, mas sim a uma pobre mãe dilacerada pela dor de uma filha doente. Caso único em todos os evangelhos. E pouco importa se a mulher é pagã, idólatra ou o que for...: ainda assim é uma mãe! Pode parecer inoportuno para falar de filhos justamente a quem invoca pela própria filha: "Não é bom tomar o pão dos filhos para dá-lo aos cachorrinhos" (Marcos 7, 27; Mateus 15, 26).

Certamente, a mulher podia supor que esse profeta, pertencente a um outro mundo, a um outro credo, a uma outra fé, não a acolheria facilmente.

Mas o sofrimento pela filha, atormentada por um demônio, leva a pedir ajuda para além dos muros da sua pertença. E o desejo de bem-estar leva uma mãe a não se deter diante da primeira rejeição. Essa história parece sugerir que, antes ainda de experimentar o amor universal que une todas as pessoas sobre a terra, os mortais acertam as contas com a universalidade do mal que atinge indistintamente justos e injustos, judeus e pagãos, escravos e livres, homens e mulheres. O mal parece não conhecer limites, barreiras, religiões... Não é por acaso que o protagonista do livro de Jó é justamente um homem estrangeiro. Pode bastar o anúncio de um Deus particular que liberta um povo (e só esse?!) para combater a universalidade do mal? A luta entre particularismo divino e universalismo diabólico parece díspar!

E se a urgência da missão de Jesus a um povo agredido parece levá-lo a definir as prioridades e a considerar que não pode se permitir digressões, a determinação de uma mulher estrangeira ousa defender que existe um direito de ajuda para todos aqueles que foram agredidos pela vida. Um direito que pode fazer com que sejam revistas até as urgências da missão. Como é possível, além disso, dividir tão radicalmente o campo de missão ("Eu vim para as ovelhas perdidas de Israel")? O mundo está contaminado pelas pessoas. Os cães e os filhos habitam o mesmo espaço vital! As imagens utilizadas por Jesus são, então, retomadas e ampliadas pela mulher que afirma compreender por que o pão para saciar os filhos não pode ser jogado aos cachorrinhos... mas estes não estão distantes, eles vivem em contato com os filhos, debaixo da mesa. Esse pai amoroso que sacia os filhos não pode desprezar o fato de dar atenção a um filhote dilacerado do mal.

Dois olhares sobre a fé se confrontam. Aparentemente, parecem irreconciliáveis.

De um lado, o de Jesus, que sente como vinculante a sua pertença. Não é tempo de desperdício! Na crise, é preciso otimizar os recursos e concentrar as energias! Não se pode salvar o mundo inteiro. É preciso ter prioridades! E os filhos de Israel só têm ele, são como ovelhas sem pastor, agora que o último profeta foi morto.

De outro lado, há o desejo e a determinação de uma mulher que reivindica audiência. Seu único cartão de visita é a dor e o desespero pela filha.

Porém, algo na narração faz supor imediatamente que a tensão entre as duas posições é menos forte. Por que Jesus vai além dos limites do seu território, se ele realmente está convencido de que ele veio só para os seus? O encontro com a mulher cananeia o confirma nessa intuição. Os mais próximos de Jesus – os evangelhos nos revelam – estão mais distantes. E aquela que deveria estar mais distante, no entanto, ajuda o Messias a desfazer essa tensão entre chamado particular e missão universal, que o levará, no fim da sua missão, a enviar os discípulos a todos os cantos da terra.

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