segunda-feira, 8 de agosto de 2011

O Jesus e a moça, a cocada e o samaritano...


Ele ia passeando tranquilamente olhando espantado o movimento sempre desordenado da Avenida Paulista. Jesus meio que gostava de passear por ali, de vez em quando. Não era bem o seu lugar, Ele sabia. Era todo um movimento alucinado de gente que passava a toda hora sem sequer se olhar. Ele gostava mais de dar uma volta na favela, principalmente porque a vendedora de cocada da esquina (uma senhora negra, gordinha e de sorriso alegre) lhe lembrava muito a sua mãe... e sempre o cumprimentava: "Quer cocada, Senhor?". Ele comia, de vez em quando. Não sempre, que côco lhe fazia pigarrear, coçando a garganta. Mas a alegria da mulher, e o gosto de amor na cocada eram tão fortes, lembravam tanto a humildade da pacata Jerusalém em que Ele crescera, que Ele comia, de vez em quando. E se sentia feliz.

Mas naquele dia Ele tinha ido passear na Paulista. Centro financeiro da nação, a coisa mais megalomaníaca que ele já conhecera, que agradava apenas por lhe fazer renovar a vontade de entender o diferente... Ele que achava aquilo tudo tão estranho, tão obsessivo, tão absurdo... Gostava de passear por ali, de calça jeans e sandália, se esforçando para olhar a cada um e perceber os seus sentimentos, as dores, as angústias, os sonhos escondidos e até mesmo oprimidos por aquela velocidade toda desesperada... E naquele dia, em que ele tinha resolvido passear na Paulista, assustou-se de repente com alguém ali que lhe percebera.

- Jesus?

Era uma garota jovem, que parecia ter uns 17 para 18 anos. E os olhos dela ficaram felizes ao perceber que era Ele mesmo quem havia encontrado.

- Jesus, que bom te ver! Quero falar contigo faz tempo! Por que nunca mais foi lá na comunidade, Senhor?
- Estou lá todo dia... às vezes silencioso, meio sem ninguém me ver, mas tô sempre por lá - respondeu, com um sorriso.
- Ih, Senhor, então sou eu quem estou vacilando, sem te perceber. Mas que bom que encontrei você por aqui. Tem um tempinho pra trocar uma ideia comigo?
- Claro, claro! Mas tô cheio de fome. Topa uma lanchonete, coisa assim?
- Tem um McDonalds logo ali na frente.
- Ih, muito capitalista. Prefiro o cafezinho do boteco que tem na rua ali de trás. Topa?
- Senhor, você é o cara.
- O cara é o seu Zé, lá do boteco. Ninguém faz café melhor que ele!

E caminharam... café comprado, mais um pão com manteiga para abastecer o estômago, e começaram a prosa.

- Então, mocinha, me conte: o que lhe aflige?
- Então, Jesus... tô angustiada. O mundo tá cercando a gente de tanta informação, que eu não sei mais o que faço para seguir um caminho bom, um caminho de fé.
- Calma, calma. Reflita com calma. Se você quis vir falar comigo, é porque lembra de alguma coisa do que eu disse, e deve se importar com isso, não é?
- Sim, com certeza!
- Então... lembra primeiro do mandamento que eu dei...
- Amar a Deus sobre todas as coisas, e ao próximo como a mim mesma.
- Isso. Tá aí, ó... eu acho que você tem a resposta! Pelo menos foi sempre esse o conselho que eu tive pra oferecer!
- Eu sei, Senhor! Mas é disso mesmo que eu estou falando! Tem tanta gente tentando me dar tanta referência ao mesmo tempo! Não sei mais quem é o meu próximo! Como faz, Jesus? Tô angustiada!

Jesus riu um riso doce, de nostalgia. Lembrou-se de algo semelhante que lhe havia acontecido bastante tempo antes daquela tardinha.

- Vamos ver se eu te ajudo. Pensa comigo: sabe aquele pessoal lá da comunidade, que tá envolvido com o tráfico de drogas?
- Sim. É uma realidade muito triste, não é?
- Sim, muito triste... meu sofrimento aumenta todos os dias, quando vejo que isso se espalha. Mas vamos continuar o raciocínio. Digamos que, numa destas brigas de gangue, um traficante foi baleado, ficando muito ferido, jogado na rua quase morrendo. Passou então um padre da comunidade, e viu tudo acontecendo, mas não ajudou o rapaz.
- Pior que eu acreditaria nisso. Eu sei que tem muita gente boa na igreja que defende a vida desse pessoal, e luta por eles... mas ainda é tão forte a filosofia de que "bandido bom é bandido morto"!
- Pois é...
- Mas siga a história, Senhor.
- Vamos lá... pouco tempo depois, passou uma daquelas senhoras evangélicas da rua que fazem aquele trabalho de evangelização, sabe?
- Sei. Ela ajudou o rapaz?
- Pior é que não. Mesmo com os ferimentos ali aparecendo, ela achou que ele podia estar fingindo alguma coisa para lhe roubar, olhou para ele como um pecador.
- Gente, que absurdo! O moço merece alguma ajuda! Não importa o que ele faz!
- Pois é a aí que a história melhora... mal a senhora acabou de passar, veio um moço que era... deixe-me ver...

E Jesus fez uma pausa concentrada, tentando achar o que melhor lhe serviria para terminar a história.

- Um homossexual.
- Nossa...
- Assusta um pouco, não é?
- É... a gente até diz que respeita, mas na verdade ainda não consegue lidar bem com a diferença. Mas enfim, ele ajudou o rapaz?
- Sim, ajudou. Tentou levá-lo para um hospital, mas ele tinha medo de ser preso, e o moço acabou levando o garoto ferido para a própria casa, abrigando e cuidando dele até que melhorasse.
- Tudo isso assim, de graça?
- Sim, claro! Por que a pergunta?
- Me desculpe pelo comentário, Senhor, mas será que o moço gay não ficou interessado no bandido?
- Talvez até tenha, mas não ajudou só por isso. Ajudou por sentir compaixão. Homossexuais têm todos os sentimentos que as outras pessoas têm, não é? Pelo menos eu acho...
- Verdade... E o bandido? Não tentou assaltar a casa, nem nada?
- Nada. Ficou apenas agradecido, e quando melhorou, foi embora.
- Bonita história, Senhor. É uma metáfora, não é?

Jesus riu.

- No meu tempo, chamavam isso de parábola... Mas o nome não interessa tanto. Vamos ver é se consigo fazer você entender porque te contei tudo isso: na sua opinião, entre o padre, a senhora e o homossexual, qual foi o próximo do rapaz ferido?
- Foi o gay, Senhor. Foi quem teve compaixão, carinho, cuidado...
- Pois então vá, e faça o mesmo.

Os olhos da garota brilharam por ter encontrado algo tão bonito, que lhe soava como resposta. Abriu um sorriso tímido, de quem começava a compreender, e agradeceu a Jesus.

- Por nada, querida. Venha conversar quando quiser. Agora preciso ir. Queria voltar lá na comunidade ainda hoje. Estou com vontade de comer cocada.
- A da moça da esquina? Costuma me dar pigarro.
- Em mim também - e riu. Mas ainda assim, nada me convence de que aquela é a cocada mais maravilhosa do mundo. Vai amor na receita.
- Verdade, Senhor. Então até mais. Obrigado, de novo!
- Por nada, de novo!

Jesus levantou-se para ir embora, e enquanto pegava as moedinhas no bolso da calça, a fim de pagar o café e o pão, ouviu a moça lhe chamar de novo:

- Senhor!
- Diga!
- Parando pra pensar, o Senhor me contou a parábola do samaritano!

Rindo novamente, Jesus respondeu:

- Pensei que vocẽ nunca fosse reparar nas semelhanças entre as histórias...
- Estou processando as informações ainda... devo estar meio lenta. Mas me diga, Jesus: por que o Senhor não me mandou simplesmente lembrar da parábola, ou ler ela na Bíblia, para entender o que o Senhor queria?
- Porque talvez ela não fosse fazer tanto sentido para você. Se eu falasse novamente do sacerdote e do levita, em vez do padre e da evangélica missionária, talvez você não fosse entender que eu estava falando de gente que domina algum poder, que costuma dizer que segue a Bíblia, e que talvez tenha deixado de ajudar o rapaz machucado exatamente achando que estava agradando a Deus, por não se misturar com o pecado. Se eu falasse num samaritano, em vez de falar num homossexual, talvez você não entendesse que eu estava falando de gente que costuma ser odiada, malvista, desprezada e excluída, como os samaritanos eram no meu tempo, e como os homossexuais são hoje. Se eu não tivesse falando de gente do seu tempo, da sua realidade, talvez você não entendesse que eu estava querendo dizer que vai para o céu quem pratica o exercício do amor, quem pratica a liberdade. E nem sempre estas pessoas são aquelas que se dizem religiosas, porque por vezes elas usam a palavra do meu Pai para oprimir.
- Isso é muito forte, Jesus.
- Sim, eu sei... A história do samaritano foi uma das mais subversivas que contei em meu tempo. E acho que falar de homossexuais hoje é uma atualização interessante, subversiva também. Muita gente talvez nem acreditaria em mim falando estas coisas hoje, não é?
- Só gente que ainda não sabe o quanto o Senhor é bacana, Jesus... só gente que não sabe o quanto você briga pra que a gente se transforme, e transforme o mundo.
- Brigo sim. Na paz, mas brigo mesmo.

Deu mais um sorriso, e virou-se para pagar o lanche. Seu Zé reconheceu o velho freguês de sempre, e disse, no meio de uma gargalhada:

- Olha, seu Jesus, o pão eu vou cobrar porque a gente aqui precisa, né? Mas o café é de graça!
- Seu Zé, o senhor é o cara, seu Zé! - Jesus respondeu, feliz.

Deixou as moedinhas no balcão, e foi-se embora, arrastando o chinelo pelo chão da rua.
No meio do caminho para a favela, já se perguntava sobre qual sabor de cocada iria querer aquele dia.

- Murilo Araújo (@murilo17)
Reproduzido via blog do autor

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