domingo, 7 de agosto de 2011

O homem que não entendia a verdade


A conversa de Pilatos com Cristo e aquele silêncio à última pergunta. O comportamento do magistrado romano foi defendido por Nietzsche. Segundo Kelsen, ele agiu com honestidade. O Nazareno não disse nada, e podia se permitir isso. A sua vida, escreveu Kierkegaard, era a resposta.

A análise é do escritor e jornalista italiano Armando Torno, em artigo publicado no jornal Corriere della Sera, 27-07-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto, aqui reproduzida via IHU com grifos nossos.

Eis o texto.


A família dos Pôncios devia ser de origem sunita e já era conhecida no tempo da república romana. Na época de Augusto, o nome é comum nas diversas classes sociais, e eram chamados desse modo os cônsules dos anos 17 e 37 da nossa era. Mas o sobrenome Pilatos é raro, com um significado nada fácil de definir: poderia significar "armado com pilum", a lança da infantaria romana, ou "calvo", mas não deve ser excluído "despenteado".

Pôncio Pilatos não devia ter origens nobres, e o pilum faz com que o imaginemos em um acampamento, entre aqueles que começavam a sua ascensão nas níveis inferiores do Exército. A carreira? Provavelmente mérito da mulher Claudia Prócula, que teria sido filha ilegítima de Claudia, esposa do imperador Tibério e neta de Augusto. Encontramo-la na Palestina, em Jerusalém, durante os últimos dias de Jesus, embora as cônjuges dos procuradores residissem em Roma.

Além disso, lemos no Evangelho de Mateus: "Enquanto [Pilatos] estava sentado no tribunal, sua mulher mandou dizer a ele: 'Não te envolvas com esse justo, pois esta noite, em sonho, sofri muito por causa dele'" (27 , 19).

A hipótese de que Pilatos era "amigo de César" - alguns a fundamentam na passagem do Evangelho de João 19,12 – não tem valor e, para reconstruir o seu perfil, são preferíveis outras referências, começando por aquela revelada por uma epígrafe gravada em um bloco de pedra calcária, descoberta em 1961 em Cesareia, a atual Qaisariyyeh: ali, leem-se o nome e o cargo ocupado, Pontius Pilatus Praefectus Iudaeae. Sabemos também que ele governou a Judeia por um tempo insolitamente longo, do ano 26 ao 36. As razões devem ser buscadas quase certamente na satisfação de Roma.

Mas as fontes judaicas o consideram de forma muito diferente, e tanto Fílon de Alexandria, na Legatio ad Caium, quanto Josefo Flávio, nas "Antiguidades judaicas", não perdem a oportunidade de colocá-lo em maus lençóis. Entre as causas do descontentamento, estava também a utilização que o prefeito fez da cavalaria e das tropas com armamentos pesados para reprimir os samaritanos, o que custou inúmeras vítimas.

Coube justamente a Pôncio Pilatos, homem concreto e decidido, encontrar Jesus e viver com ele um dos momentos cruciais da sua história. Coube a esse magistrado, depois de ter tentado salvá-lo, fazer com que ele fosse flagelado e entregue aos solados para a execução.

Dizer que fosse o contrário é quase um eufemismo, até para quem não acredita na divindade do seu interlocutor: sabemos certamente a partir dos Evangelhos que houve uma conversa entre eles. Mesmo que o romano não pudesse entender naquele momento o que Jesus lhe respondia, deve-se dizer que, de acordo com o que se lê no capítulo 18 do Evangelho de João, os dois chegaram a trocar uma série de considerações que depois serão comentadas sem descanso por teólogos e filósofos.

Até chegarmos às palavras cruciais: "Pilatos disse: 'Então, tu és rei?'. Jesus respondeu: 'Tu o dizes: eu sou rei. Por isso nasci e para isso vim ao mundo: para dar testemunho da verdade. Todo aquele que é da verdade escuta a minha voz'. Pilatos lhe disse: 'Que é a verdade?'. E, dito isso, saiu novamente ao encontro dos judeus..." (João 18, 37-38).

E aquela palavra, verdade, com a qual a cena é cortada, nos mostra dois personagens distantes que se encontraram no momento crucial da história do Ocidente. É inútil tentar interpretar mais uma vez as frases proferidas por ambos, porque, para um judeu, a verdade era emet (significava firmeza, estabilidade, quando era referida a pessoas ou coisas) e, para um romano, veritas, que no tempo de Tibério poderia significar compreender a realidade das coisas.

Pilatos, talvez, jamais tinha ouvido falar o termo "verdade" ser pronunciado em grego, ou seja, alétheia, língua na qual nos chegou o Evangelho de João, mas, mesmo que o tivesse ouvido em alguma viagem sua, dificilmente teria meditado sobre ela naquele momento por meio da filosofia grega. Uma pena. Se tivesse sido Cícero... mas a história não é feita de "se".

Nietzsche irá defender Pilatos; para Kelsen, ele agiu com honestidade. A partir do século IV, a arte começou a representá-lo no ato de se lavar as mãos, mesmo que esse gesto sele significados ainda por serem descobertos. No entanto, em um texto apócrifo do século II, o Evangelho de Nicodemos, Jesus responde à pergunta de Pilatos: "A verdade é do céu". Ao que o magistrado romano respondeu: "Não há verdade sobre a terra?". O texto continua, mas o que queremos lembrar é o fato de que um interlocutor entendia tudo, e o outro apenas coisas práticas.

Os dois eram radicalmente diferentes na alma, além de no papel. Jesus fez bem em não responder. Ele podia se permitir isso. A sua vida, sublinhará Kierkegaard, era a resposta.

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