quinta-feira, 4 de agosto de 2011

O Dia da Vergonha Política

Instalação: Daniel Rozin

Para tudo existe um limite. Não se consegue passar pela vida sem uma boa dose de paciência, sem a capacidade de relevar certas coisas e se colocar no lugar do outro para tentar entender seu ponto de vista. Mas há um limite. E não dá mais para termos tolerância com a intolerância.

A Câmara de vereadores de São Paulo aprovou em votação simbólica o Dia do Orgulho Hétero, uma proposta de Carlos Apolinário, do DEM. Desnecessário dizer que o projeto teve o apoio da bancada evangélica, e é aqui que já começam os erros. A mera existência de uma bancada evangélica, católica ou de qualquer outra inclinação religiosa é um câncer no sistema político nacional. A nossa Constituição é clara em afirmar que o Estado brasileiro é laico, logo essa mistura que certos "representantes" insistem em criar entre política e religião vai contra a carta magna do país e acaba gerando absurdos como esse Dia do Orgulho Hétero.

A mera ideia de criação dessa data é descabida. Apolinário, a mente brilhante por trás da proposta, diz que é uma forma de protesto contra a Parada do Orgulho Gay e os "excessos e privilégios" dos homossexuais. Que privilégios, senhor Apolinário? O privilégio de não poder demonstrar seu afeto em público por quem se ama sem temer receber olhares atravessados, reclamações e até agressões? O privilégio de ter que se contentar com alguns lugares voltados apenas para o público LGBT? O privilégio de, apenas no ano de 2011, ter o direito à união civil reconhecido pelo STF, numa votação histórica, porém atrasada?

A Parada do Orgulho Gay não surgiu para oferecer mera diversão aos frequentadores. Ela foi criada para chamar a atenção da sociedade para a necessidade do reconhecimento dos direitos dos homossexuais e para clamar por uma solução para os problemas que enfrentam, como os crimes de ódio e intolerância que se repetem diariamente. Ódio incitado por pessoas que acham que podem e devem impor sua visão religiosa conservadora e atrasada sobre toda a população brasileira.

Resguardados os excessos que até podem ocorrer (que, se pararmos para analisar, não são diferentes dos que ocorrem no carnaval ou nas micaretas Brasil afora), a Parada Gay também serve para dar visibilidade a essas pessoas, para dizer à população "Ei, nós existimos, nós estamos aqui". Afinal nem na TV os gays recebem o espaço e a atenção que merecem, a menos que sirva aos interesses das emissoras. Um personagem travesti que adora dizer que "tá bandida" ou outro personagem gay que acompanha sempre uma ex-garota de programa que enriqueceu após conhecer um senador têm espaço para garantir a audiência de um humorístico que não tem a menor graça, mas Deus nos livre de ver um beijo gay em uma novela. Gays e drag queens também podem participar de reality shows rurais de uma emissora evangélica para dar ibope, mas, se a conversa começa a abordar homossexualidade, a rede de TV corta o áudio do programa.

Há anos existe o Dia da Consciência Negra para lutar contra o preconceito e dificuldades que os negros ainda enfrentam no Brasil. Se minimamente civilizada, qualquer pessoa se revolta ao lembrar do apartheid na África do Sul. Mas o que os gays enfrentam hoje é um verdadeiro apartheid: são obrigados a viver em bares gays, boates gays, praias gays para não correrem o risco de serem agredidos gratuitamente.

Se algum parlamentar ao menos cogitasse criar o Dia da Consciência Branca teríamos uma onda de protestos avassaladora. Pois é exatamente isso que o tal vereador do DEM está fazendo: está invertendo a lógica da coisa para celebrar a intolerância, insultando o princípio do protesto e da reivindicação civil justa. Os negros e os gays infelizmente precisam de um dia para clamar pelos direitos que lhe são negados e sensibilizar acerca de todos os desafios que precisam enfrentar diariamente. Os heterossexuais, não. Nenhum adolescente precisa passar pela angústia de pensar na reação de seus pais ao contar para eles que é heterossexual, correndo o risco de ser espancado ou posto para fora de casa. Um heterossexual não leva uma lâmpada fluorescente na cara porque se veste ou fala de um jeito diferente. Os casais héteros sempre tiveram garantidos seus direitos à herança, pensão e todos os benefícios da união estável, e ainda podem realizar o sonho de adotar uma criança quando são incapazes de gerá-la naturalmente.

Então, caro Carlos Apolinário, não tenha a pachorra de dizer que a Parada do Orgulho Gay é um excesso e um privilégio dos homossexuais. Você tem todo o direito de continuar com sua mente tacanha e seus preconceitos, mas lá na sua igreja. Porém aqui, no espaço público e, principalmente, nos espaços de representação política dos cidadãos, guarde sua intolerância para você. Agora só resta a Gilberto Kassab vetar esse despautério e ter a clareza que faltou à Câmara dos vereadores de São Paulo. Talvez assim os outros parlamentares brasileiros aprendam algo.

- Tiago Sitônio Guedes
Reproduzido via ParlamentoPB com grifos nossos

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