sexta-feira, 5 de agosto de 2011

Duelo

Milk Maid: Kerstin zu Pan

O que é este horror ao semelhante que nos torna a todos alheios uns aos outros? Mas, se não nos aproximarmos, se não olharmos ao menos com olhos pacíficos as diferenças, nunca vamos vislumbrar, para além delas, as semelhanças...


Com amor,


Cris

Gosto de caminhar no meio da multidão. Num cruzamento da avenida Paulista, à uma hora da tarde, sinto-me anônimo e protegido como um peixe no cardume. Nada me distingue, sou só mais um, sem nome, credo ou classe social.

Sensação completamente diferente de quando, andando por uma calçada deserta do bairro, vejo despontar na esquina oposta um outro pedestre. Se entre a turba me diluo, tranquilo, diante dessa presença que se aproxima me concentro, aflito. Agora sou apenas eu, ele é o Outro, com maiúscula, é todo mundo, é a teletela do Big Brother (de Orwell, não do Bial), espelho-janela das salas de interrogatório da polícia, em filme americano.

Que pensarão de mim esses dois olhos inquisidores? Que juízo farão de meus passos, das minhas roupas, da expressão que levo em minha face -ainda mais agora, que tropeço nessas dúvidas? Subitamente, os braços me sobram, as mãos quase roçam o chão, como as orelhas de um basset hound.

Questão prática: devo encarar esse ser que vem em minha direção ou ignorá-lo por completo? Não, não, ignorar seria suspeito -suspeito de que, meu Deus? Não sei, mas talvez ele saiba, ou então descubra: melhor é dar uma olhada rápida, ainda de longe, como quem não quer nada - e, por acaso, eu quero alguma coisa?! -, depois fixar as pupilas num ângulo de 45 entre o horizonte e o chão, inclinação cívica e recatada, como bem sabem os passageiros do ônibus e do metrô, os pedestres bem treinados e as ripas das persianas.

Enquanto levanto os olhos para checar o concidadão, torço para encontrar alguém muito diferente de mim: uma platinada perua, um porteiro de uniforme cáqui, um senhor de bengala, uma estudante mascando chicletes. Afinal, para a perua eu serei apenas um homem pobre. Para o porteiro, um homem rico. Para o velho, um homem novo. Para a menina, um homem velho. Não haverá disputa nenhuma entre nós e, mesmo que nos encaremos, a distância de nossos mundos impedirá um julgamento preciso.

Já ao passar por um semelhante, um sujeito da mesma idade e faixa socioeconômico-cultural, será impossível fugir da herança de milênios de competição por comida, mulheres, poder. Ainda que só por um segundo, nos mediremos, perguntando-nos: esse que vem aí é melhor ou pior do que eu? Se fôssemos gorilas, bateríamos no peito, mandando nossos gritos para a selva. Se fôssemos alces, chocaríamos nossos chifres, até sangrarem. Fôssemos ursos, nos estapearíamos, até que um dos dois desistisse e voltasse para o bosque, enquanto o outro buscaria, orgulhoso, o olhar de uma fêmea.

Ainda bem que não sou gorila, nem alce, nem urso. Sou tímido e covarde e só ia levar bordoada num documentário do National Geografic Channel. Ainda bem que, ao levantar os olhos, percebo que o pedestre vindo em minha direção é o seu Wilson, dono da banca na rua de baixo. Cumprimentamo-nos com um meneio de cabeça, amistosos e desinteressados, como uma zebra e um flamingo que bebem água de um mesmo laguinho, na savana. Então ele passa por mim e eu sigo em frente, levando minhas neuroses para longe dali.

- Antonio Prata
antonioprata.folha@uol.com.br
Reproduzido via Conteúdo Livre

Nenhum comentário:

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...