domingo, 24 de julho de 2011

Sexo: obediência e revelação


"A sexualidade humana é o núcleo de toda a agitação católica que o Papa e o Vaticano ainda se recusam a enfrentar e a discutir de forma realista." A análise é de Richard Sipe, conselheiro em saúde mental clínica, que viveu por 18 anos como monge beneditino e sacerdote. Fez sua formação específica para tratar de padres católicos com problemas de saúde mental. O artigo foi publicado no sítio National Catholic Reporter, 01-06-2010. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto, reproduzido via IHU com grifos nossos.


O teólogo Yves Congar disse uma vez: "Na Igreja Católica, muitas vezes pareceu que o pecado da carne era o único pecado, e a obediência, a única virtude". Essa dicotomia dinâmica forma a chave para a estrutura de toda a crise dos abusos sexuais do clero que atualmente envolve a Igreja Católica.

Mas o abuso sexual de menores por clérigos que fizeram o voto do celibato é apenas o sintoma de um sistema desesperadamente necessitado de uma reconsideração fundamental.

A sexualidade humana é o núcleo de toda a agitação católica que o Papa e o Vaticano ainda se recusam a enfrentar e a discutir de forma realista.

Em 1990, um bispo que voltava de Roma me disse que o Papa João Paulo II instruiu pessoalmente cada novo bispo para que "não discutisse em público" o controle de natalidade, o sacerdócio casado, a ordenação de mulheres, o aborto e o conjunto de questões celibato/sexuais que constituem um agenda que os teólogos têm apontado há décadas como sendo precisamente o "emaranhado de questões que entopem" a agenda católica.

As lideranças católicas romanas não conseguiram lidar de forma confiável e transparente com toda a sexualidade humana. William Shea apresentou o desafio de forma mais elegante ainda em 1986, quando listou as questões que precisam ser discutidas: "o divórcio e o recasamento, o sexo pré-marital e extraconjugal, controle de natalidade, aborto, homossexualidade, masturbação, [ordenação de mulheres, celibato mandatório] e o monopólio masculino do liderança". Ele opinou que o medo e talvez o ódio às mulheres podem estar no fundo dos problemas eclesiais.

Seria hipócrita protestar que a Igreja tem discutido essas questões ou convida para o diálogo sobre a sexualidade humana. É verdade, o Vaticano tem feito pronunciamentos e declarações sobre cada um dos itens da lista, mas nenhum deles convida ao diálogo. A observação de Congar se confirma. Sexo é tudo pecado. Virtude é submissão e obediência à autoridade e seus ditames.

Apesar do esforço de quatro anos do Papa João Paulo II para definir uma Teologia do Corpo, ele nunca transcendeu algumas das restrições básicas da doutrina da Igreja de que o sexo é pecado. O sexo continua sendo admissível e sagrado apenas dentro de um casamento válido.

Um problema crônico com os pronunciamentos da Igreja sobre o sexo é o uso da ideia de lei natural, assim como eles o definem e aplicam. O Vaticano apresenta a sua interpretação da natureza sexual humana como uma determinação absoluta. Eles isolam a ideia e impõem-na como um instrumento de controle. A abordagem não reconhece que o direito natural também é o guia prático e razoável inerente à consciência independente da revelação. Muitos católicos usam a lei natural como o mapa para orientar seu comportamento sexual. Por exemplo, a lei natural muitas vezes ultrapassa os ditames da "Humanae Vitae" em matéria de planeamento familiar. Alguns comportamentos tachados pela Igreja como "contrários ao direito natural" (masturbação como um exemplo dentre muitos) devem ser abertos ao exame e ao diálogo nas mentes e nos corações de muitos católicos sérios.

"Intrínseca" é uma palavra da Igreja que impede qualquer possibilidade de conversa. O controle da natalidade é apresentado como intrinsecamente mau; assim como o aborto; e a masturbação. Sexo com uma garota menor de idade, porém, não é considerado intrinsecamente mau, só pecado grave.

Os atos homossexuais são "intrinsecamente desordenados". Um documento de 1986, de autoria do cardeal Joseph Ratzinger, declarou que a orientação homossexual, embora não pecaminosa em si mesma, "é uma tendência mais ou menos forte e ordenada a um mal moral intrínseco; e, portanto, a própria inclinação deve ser vista como uma desordem objetiva". Como se o conceito de Pecado Original não fosse suficiente para abranger todos os seres humanos de qualquer orientação ou inclinação.

A definição de sexo como pecado estabelece e mantém um controle autoritário, porque bispos e padres (apenas) têm o poder de perdoar o pecado mortal. Eles são senhores sobre o território interior da alma onde as violações secretas são armazenadas. Exige-se que os católicos apresentem seus graves pecados na confissão sacramental para a absolvição de um sacerdote pelo menos uma vez por ano. Todos os pecados sexuais, claro, são graves, de acordo com a doutrina católica.

A operação de bispos em toda a crise dos abusos sexuais do clero demonstra sua crença de que o sexo com menores de idade com um clérigo é essencialmente pecaminoso e só secundariamente criminoso. Essa postura clerical levou às revelações do dano monumental além da exposição da arrogância clerical impenitente.

Dentro do sistema clerical, o padre abusador arrependido é facilmente perdoado – repetidamente – pelo poder da absolvição. A criança-vítima inocente é abandonada ao fardo psíquico imerecido de culpa e vergonha. Desde 1946, a Igreja estabeleceu uma série de centros de tratamento para o conforto e para ajudar a controlar o clero abusador. A atitude de desprezo para com as vítimas de abuso como adversários incômodos está em claro contraste com a preocupação protetiva e tolerante para com os clérigos.

Sob uma forte pressão pública desde 2002, a Conferência dos Bispos dos EUA (USCCB) instituiu medidas para educar os funcionários e seus filhos sobre os abusos – toques bons e ruins. Auditorias diocesanas para avaliar a conformidade com a Carta de Dallas, coleta de impressões digitais e protocolos para a contratação de pessoal na Igreja e mais coisas estão agora em vigor. Mas a Igreja realmente alterou qualquer um dos seus entendimentos da dinâmica sexual humana em resposta às evidências de atividade sexual do clero e de pervertidos celibatários? A autoridade da Igreja é transparente e responsável com relação a isso?

Apesar das concessões atuais sobre a denúncia de crimes do clero às autoridades civis, o poder clerical sobre o pecado sexual continua sendo construído e executado com a convicção de que a determinação da Igreja resume o conhecimento do próprio Deus e a lei imutável sobre o sexo humano. Na sua avaliação, os bispos ainda prevalecem como os juízes finais dos comportamentos sexuais, apesar das reverências ao direito e aos tribunais civis que funcionam apenas de acordo com as leis inferiores do homem. Relatórios do Grande Júri e depoimentos de padres e bispos em processos civis de abuso do clero fornecem exemplos berrantes dessa atitude improvisada.

Os representantes da Igreja que já declararam que a crise dos abusos sexuais é "história" e seus representantes de investigação que estimam que o fenômeno foi de tempo limitado e "acabou" não entendem nem a história do celibato religioso, nem as reais dimensões da crise atual. Sua imaturidade faz um grande desserviço à Igreja, aos padres e ao povo.

Entrelaçados dentro das fibras do magistério sexual católico e da operação do celibato estão fatores irresolvidos que tornam o comportamento imoral, as vidas secretas e os padrões sociopatas de ajustamento de personalidade não só comuns, especialmente nos altos escalões do poder, mas também totalmente inevitáveis em inúmeras vidas clericais. As questões irresolvidas formam um sistema doente.

A insistência do Vaticano de que todas as perguntas sobre a sexualidade humana estão resolvidas e fora de discussão – resta à pessoa apenas obedecer e se conformar – leva importantes decisões da vida para fora do domínio da inquisição, da responsabilidade e da decisão moral. A recusa do Papa e do Vaticano de entrar em um diálogo sério sobre a agenda celibato/sexual retirou da Igreja a sua liderança e sua credibilidade moral e tem sido um componente essencial da crise dos abusos sexuais do clero católico em todo o mundo.

É impossível que a autoridade da Igreja restabeleça até mesmo um pouco de respeito e de credibilidade enquanto não puder discutir aberta e honestamente toda a gama de questões sexuais que afetam tão vitalmente o bem-estar humano.

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