quinta-feira, 14 de julho de 2011

O desafio de acessar a dimensão de profundidade do cristianismo


Em dezembro de 2006, a Revista IHU On-line teve como tema a pergunta "Por que ainda ser cristão?", respondida em forma de depoimentos e testemunhos, que reproduziremos aqui espaçadamente. Esperamos com isso convidar também você, leitor, a refletir sobre a importância da fé e do cristianismo, qualquer que seja o lugar por eles ocupado em sua vida. Um forte abraço! :-)

As razões de ainda seguir o cristianismo em uma sociedade secularizada

Vivemos um momento muito particular na vida do cristianismo. Não há como escamotear a crise desta tradição religiosa em determinados contextos, como a Europa, quando o cristianismo chegou ao final do século XX com apenas 29,98% de adeptos. Comentando o caso francês, o pensador André Comte-Sponville, em livro recém-publicado sobre "O espírito do ateísmo" (Albin Michel, 2006) afirma que um em cada dois franceses hoje é ateu, agnóstico ou sem-religião, e um em cada quatorze é muçulmano. No Brasil, vivemos uma situação bem menos secularizada. O último Censo do IBGE (2000) mostrou a força da presença cristã no País, traduzida na soma dos católico-romanos (73,77%) com os evangélicos (15,44%). São quase 90% de cristãos no Brasil. Mas há que reconhecer um dado que vem chamando a atenção dos analistas, que é o crescimento dos “sem-religião” no Brasil, registrados em 7,28% no ultimo Censo.

Por que ainda ser cristão hoje? O que me motiva, substancialmente, a manter viva a minha fidelidade cristã é o magnífico exemplo de compromisso e santidade que percebo na trajetória de Jesus e no horizonte de vida em plenitude que ele anuncia para nós. Entretanto, tenho plena consciência de que nem sempre historicamente a comunidade cristã conseguiu dar continuidade aos valores que ele apontou como fundamentais para nós. Jesus é portador, para nós cristãos, de uma Presença Espiritual singular. Quando a buscamos captar no tempo e no espaço, contudo, sofremos os efeitos de sua refração. As religiões só conseguem viver a Presença Espiritual de forma fragmentária, pois são marcadas por ambigüidades e limitações. Isto também ocorre no cristianismo. O que mantém acesa a chama cristã em meu coração é o permanente desafio de buscar acessar a dimensão de profundidade do cristianismo, que está para além de suas formas superficiais.

A “teimosia” em continuar acreditando no cristianismo

Gandhi dizia que a verdade de uma religião está na fragrância de espiritualidade, amor e paz que emana de seus seguidores. É esta fragrância que percebo de forma tão linda em tantos buscadores cristãos, em tantos seguidores simples e humildes e, sobretudo, nos místicos de nossa tradição, que confirmam a minha duradoura teimosia em continuar acreditando no cristianismo. Simone Weil dizia que o vínculo de amizade com os “amigos de Deus” é o que possibilita manter sempre viva e acesa a secreta mirada em Deus. Mas minha fidelidade ao cristianismo não se dá de forma excludente. Minha experiência cristã é vivida como um desafio de ampliação de sua tenda. Vejo o cristianismo com malhas largas, estando sempre provocado a ampliar a atenção e o olhar, de forma a perceber a força e singeleza da presença universal do Espírito. E os místicos me ajudam muito a vivenciar uma sensibilidade nova, capaz de despertar para a “infinita Realidade que existe dentro de tudo o que é real” (Thomas Merton). E acredito que nós, cristãos, temos uma responsabilidade especial de destacar no nosso tempo valores essenciais que foram esquecidos ou abafados na lógica de mercado que vigora em nosso tempo: como os valores da hospitalidade, da acolhida, da solidariedade, da cortesia e do respeito à alteridade.

As razões para acreditar em Jesus

Para nós, cristãos, Jesus ocupa um lugar fundamental. É o nosso grande referencial axiológico, que abre para nós a porta de acesso ao Mistério sempre maior. Mas nos encanta, sobretudo, o seu exercício de vida e seu testemunho, como podemos vislumbrar nos evangelhos. É isto que provoca a admiração de todos, e não só dos cristãos. É o seu exemplo de compaixão e solidariedade que faz brilhar os olhos de pessoas como Gandhi, Dalai Lama e Tich Nhat Hanh. Hoje, na teologia cristã, estamos recuperando a profunda dimensão humana de Jesus: sua experiência e mistério. A nossa aproximação da experiência de Jesus nos possibilita focalizar nele muito mais um mistério que dá vida. Daí nossa atenção para o significado de Jesus para nós.

O Jesus que está próximo e presente

Os teólogos asiáticos têm sublinhado a dimensão narrativa das escrituras cristãs, que revelam a existência autenticamente humana de Jesus. Novas imagens são destacadas, como a do Jesus curador, mestre, libertador, guia espiritual, amigo e compassivo. E também de um Jesus que nos lança ao outro de forma inusitada. Para além da “teia das nuvens metafísicas” que embaraçam sua pessoa, há que redescobrir o Jesus que nos está próximo e sempre presente, do Jesus que nos possibilita captar a diafania de Deus em toda parte, que nos faculta perceber a presença de Deus como “eterno crescimento”. O desafio é trazer para nós o Jesus menino que brota do sonho de Alberto Caeiro: do Jesus que mora na nossa “aldeia”, da “Eterna Criança” animada pelo riso, pela esperança e gratuidade. Do “deus que faltava”, do “humano que é natural”, do “divino que sorri e que brinca”. Da “Criança Nova” que nos oferece a mão, mas que abraça também tudo o que existe. A beleza do cristianismo está justamente nisto: em ter no seu centro a presença de alguém que nos envia ao mistério de Deus, e que nos convida a perceber sua fragrância também alhures. A razão de ser de Jesus não está nele mesmo, mas no mistério que ele convoca e envia. E trata-se de um mistério que é plural e multiforme.

Os valores do cristianismo para o exercício da convivialidade

Se tomamos por base o núcleo das bem-aventuranças, que é um referencial essencial para a compreensão dos valores do cristianismo, podemos verificar sua grande atualidade para um novo exercício de convivialidade. Fala-se ali na importância da “infância espiritual”, entendida como total disponibilidade para captar a presença do Mistério em toda parte. É o sentido profundo que habita a idéia de ser pobres com espírito. Fala-se também do desafio de ter um coração puro, capaz de acolhida e compaixão; bem como “entranhas de misericórdia”. São valores fundamentais que devem reger a dinâmica vital de todo cristão. Mas o evangelho nos apresenta outros valores essenciais, como a hospitalidade, a delicadeza, a cortesia e o cuidado. O cristão que busca seguir em fidelidade os ensinamentos e, sobretudo, o testemunho de Jesus, é alguém que assume o desafio e a ousadia de uma comunhão universal. Não há nada no mundo que esteja excluído do abraço amoroso de Deus, e o cristão é aquele que dá testemunho deste amor.

- Faustino Teixeira
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Faustino Luiz Couto Teixeira é teólogo, pesquisador do ISER-Assessoria do Rio de Janeiro e consultor da Capes. É pós-doutor pela Pontifícia Universidade Gregoriana (PUG), Itália, doutor em Teologia pela mesma universidade, com tese intitulada A fé na vida: um estudo teológico-pastoral sobre a experiência das CEBs no Brasil, mestre em Teologia, pela PUC-Rio, com a dissertação "A gênese das comunidades eclesiais de base no Brasil" e graduado em Filosofia e em Ciências da Religião pela UFJF. Entre suas obras publicadas, destacamos:" A fé na vida: um estudo teológico-pastoral sobre a experiência das CEBs no Brasil". São Paulo: Loyola, 1987; "A gênese das CEBs no Brasil". São Paulo: Paulinas, 1988; "Teologia da Libertação: Novos desafios". São Paulo: Paulinas, 1991. Ele é organizador do livro "No limiar do mistério. Mística e Religião". São Paulo: Paulinas. 2004, e acaba de lançar mais uma obra por ele organizada, intitulada "Nas teias da delicadeza. Itinerários místicos" (sobre a qual pode ser lido um texto no blog do IHU: www.unisinos.br/ihu, em 6-12-2006. Dele publicamos um artigo na 131ª edição, de 7 de março de 2005, sobre o temor do reconhecimento da alteridade, uma entrevista na 133ª edição, de 21 de março de 2005, sobre o tema Mística comparada e uma entrevista na 162ª edição, de 31 de outubro de 2005, sobre o livro de John Hick, Teologia cristã e pluralismo religioso: o arco-íris das religiões. São Paulo: Attar, 2005. Para saber mais sobre Faustino Teixeira, conferir a entrevista publicada no sítio www.unisinos.br/ihu, dia 16-12-2005.

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