segunda-feira, 25 de julho de 2011

Ler a Palavra pode ser perigoso


Nunca se sabe com antecedência onde a aventura da leitura nos levará, pelo menos se aceitamos nos abrir à viagem, ao desconhecido, à descoberta, em vez de ler agarrando-nos covardemente a um monte de certezas adquiridas sempre. Ler não é dispor de um livro. O leitor se expõe ao texto e, de certo modo, é ele que está à disposição do texto e da sua palavra.

A análise é do teólogo e biblista suíço Daniel Marguerat. Foi pastor da Igreja Evangélica Reformada de 1984 a 2008 e lecionou Novo Testamento na Faculdade Teológica da Universidade de Lausanne, na Suíça.

O artigo que segue é um trecho do seu livro "Le Dieu des premiers chrétiens" (Ed. Labor et Fides, 2011, p. 249-252), publicado no sítio Garrigues et Sentiers, 14-07-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto, aqui reproduzida via IHU com grifos nossos.

Eis o texto.


Martinho Lutero, convocado pelo imperador Carlos V para se explicar, compareceu diante da Dieta de Worms no dia 14 de abril de 1521. Tendo-lhe sido exigido que se retratasse de seus escritos que haviam sido depostos diante dele, ele respondeu com um discurso em latim, que lhe foi pedido para repetir em alemão. Ele o fez dele, em pé, no meio da assembleia, perante o imperador:

"Estou dominado pelas Sagradas Escrituras que eu citei, e a minha consciência está prisioneira da Palavra de Deus. Não posso nem quero me retratar de nada, porque não é nem sábio nem prudente agir contra a própria consciência". E ao oficial que lhe respondeu: "Abandona a tua consciência, frei Martinho. A única atitude sem perigo consiste em te submeteres à autoridade", Lutero rebateu e persistiu: "Aqui estou, não posso fazer outra coisa. Que Deus me ajude".

Curiosamente, Martinho Lutero reivindica a sua liberdade usando uma linguagem de cativeiro: estou dominado, a minha consciência está prisioneira, não posso fazer outra coisa. Não vejo nisso uma astúcia para se inocentar, porque o monge de Wittenberg não recorre a tais estratégias lamentáveis de defesa. Vejo a confissão de que ele havia embarcado em uma aventura que o arrastou inteiramente: a leitura da Palavra. E, nessa aventura, o leitor não é o mestre, mas sim a Escritura que dele se apossa. Depois de Worms, Lutero se encerrará em Wartburg: cativeiro desejado, deliberado, sinal do cativeiro da leitura.

Ler, portanto, não é sem perigo. Nunca se sabe com antecedência onde a aventura da leitura nos levará, pelo menos se aceitamos nos abrir à viagem, ao desconhecido, à descoberta, em vez de ler agarrando-nos covardemente a um monte de certezas adquiridas desde sempre. Ler não é dispor de um livro. O leitor se expõe ao texto e, de certo modo, é ele que está à disposição do texto e da sua palavra. Ler pode ser perigoso.

Parece que dos relatos de milagre à linguagem do julgamento, de Lucas a Paulo, dos Atos dos Apóstolos ao Apocalipse, as imagens de Deus são infinitamente mais diferentes do que se pensava. O Novo Testamento não abriga uma doutrina, mas expõe diversas abordagens de Deus, ou mais exatamente reúne diversas tentativas de dizer o mistério de Deus. Ler é arriscado. O risco aqui é de volatizar a unidade do Novo Testamento. Ainda é possível falar de “um” Deus dos primitivos cristãos?

Avaliemos a extensão dessa constatação. Essas diversas imagens de Deus, exumadas pela leitura, não são simplesmente adicionáveis umas às outras, como se, acumulando os autores do Novo Testamento, sobrepondo suas percepções de Deus, se obtivesse assim um retrato completo do Deus dos primeiros cristãos.

Constatou-se que os seus discursos não podem ser colocados simplesmente um depois do outro de ponta a ponta. O apóstolo Paulo tem um modo de significar a graça, com a sua convicção poderosa de que a barreira da Lei caiu, que não concorda imediatamente com a teologia de Mateus, para a qual o Reino é uma fenda, uma porta estreita através da qual devemos passar. Lucas se obstina em perceber Deus na espessura da história social e política do seu tempo, enquanto que o Apocalipse vive da convicção de que Deus se ausentou do mundo.

Gálatas 3, 28, perpetuando o gesto libertador de Jesus, abole toda prerrogativa do homem sobre a mulher, mas, na outra ponta do Novo Testamento, as epístolas pastorais delineiam o retrato de uma mulher destinada ao silêncio, convocada a se submeter ao homem e responsabilizada pela queda (1 Timóteo 2, 9-15; 5, 3-16). A unidade do Novo Testamento não se fará por adição.

É preciso, então, se resignar à constatação de uma Escritura dividida em posições teológicas irreconciliáveis? O Deus dos primeiros cristãos seria o emblema de teologias disparatadas? Eu diria que devemos admitir a irredutível diversidade das imagens de Deus no Novo Testamento, e que esse consentimento passa por um luto: o luto da uniformidade. Só a renúncia à utopia da identidade nos faz acolher a pluralidade como um fato positivo, e não como uma ameaça. A unidade do Novo Testamento não é suspensa pelas semelhanças que se encontrariam nos seus autores inspirados. Ela está na “sua comum vontade de dar conta do evento do Cristo”. Jesus de Nazaré, pelo fato de todos os relatos e os discursos tenderem a ele, cimenta a unidade do Novo Testamento.

Mas atenção. Essa unidade está em tensão. Os primeiros cristãos, cada um à sua maneira, acolheram e atualizaram na sua situação a memória de Jesus. A sua diversidade indicaria que alguns preservaram fielmente a mensagem do Nazareno, enquanto outros a teriam distorcido?

Desconfiemos desses termos, porque a "fidelidade à tradição de Jesus" que consiste em fixá-la para transmiti-la palavra por palavra é, na realidade, uma infidelidade fundamental. Ela faz da palavra de Jesus um objeto de museu, uma palavra a ser incensada assim como incensamos os mortos. Os primeiros cristãos não tinham essa visão fixa da tradição. A palavra de Jesus, por ser a palavra do Senhor presente na Igreja, devia ser atualizada. Para eles, “ser fiel a uma tradição impõe que ela evolua e se desenvolva”. Prova disso é que a escritura dos Evangelhos não esgotou o fluxo das tradições orais, sinal de que até essa imponente cristalização literária não havia esgotado a memória de Jesus. A Igreja antiga, além disso, manteve só uma parte dos escritos cristãos para fazer a sua seleção normativa da sua fé. Muitos outros, que nós conhecemos em parte, foram descartados e ainda amplificam consideravelmente a diversidade da qual falamos. Mas essa é uma outra história.

Os primeiros cristãos engajaram a sua fidelidade a Cristo por vias teológicas diferentes, e o Novo Testamento vive da reunião dessas fidelidades. Paulo é fiel à memória de Jesus quando afirma que a dignidade do homem lhe vem apenas de Deus e que a salvação não é uma performance religiosa. Mateus é fiel à memória de Jesus quando repete obstinadamente que a fé se concretiza por meio do gesto e da palavra, senão não existe. Lucas é fiel à memória de Jesus quando vê o Espírito de Deus em ação nas peripécias da missão. O autor do Apocalipse também é fiel quando defende que os poderes opressivos já foram vencidos na cruz, e que o seu julgamento é apenas uma questão de tempo.

O Novo Testamento vive da acolhida dessas fidelidades, cuja diversidade chega até o desacordo, e as mantém unidas. Ele pode fazer isso, porque os testemunhos e os sistemas teológicos que ele reúne não convidam a adotar um princípio, uma norma, uma doutrina, mas sim a seguir alguém, Jesus de Nazaré, o Cristo, Parábola de Deus. A fidelidade a uma pessoa não se satisfaz com uma uniformidade, e o Espírito se encarregou de fazer com que os primeiros cristãos compreendessem isso.

Gerir a sua herança hoje é resistir ao fantasma totalitário do discurso único e arriscar, ao mesmo tempo, uma palavra. Uma palavra que deverá se submeter humildemente ao testemunho das Escrituras, para saber se elas têm lugar, e como, no espaço das fidelidades a Cristo. Mas uma palavra que – e justamente se se afastar do discurso majoritário – talvez poderá não ser totalmente a nossa, porque nela fala uma Outra Palavra, que faz dizer: não posso fazer outra coisa...

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