sexta-feira, 10 de junho de 2011

O colecionador de lágrimas

Arte: Helen Sear

É interessante a coleção de lágrimas do professor de antropologia. Tem onze exemplares, colhidos de cinco anos para cá. As lágrimas são expostas em concavidades feitas numa mesa de granito e cada uma é coberta por uma redoma de cristal da Boêmia, todas conservando a forma e brilho peculiares. Ele iniciou a coleção por brincadeira, colhendo lágrimas da birra de um filho, tomou gosto e agora é um colecionador apaixonado. Aproveitando o lacrimejamento que a fumaça do cigarro me provocou, fez uma demonstração do seu trabalho. Colhe a lágrima com uma pinça de pontas côncavas embebidas em muco de caracol e a deposita numa salva de prata contendo o mesmo muco, rola a lágrima em todos os sentidos com delicadíssimos movimentos até transformá-la numa lágrima à milanesa e a coloca na concavidade do granito. Passado algum tempo o muco escorre para o fundo da concavidade e forma um berço para a lágrima, que ali fica boiando, tal como brotou do olho. De todas as coleções que tenho visto essa foi a mais estranha e uma das mais bonitas. A peça mais valiosa é uma lágrima recente de dor antiga, que ele surpreendeu junto à base do nariz de um solteirão sarcástico e com rara felicidade conseguiu colher intacta (foi a única que pinçou já rolada). É do tamanho médio e tem um brilho discreto, diferente do brilho mais ou menos comum a todas as outras da mostra e que transmite uma sensação de distancia se olhada fixamente com óculos de lentes escuras. O professor faz questão de que todos saibam que não há morbidez em seu hobby e eu notei essa preocupação pelas explicações que me deu sobre uma lágrima proveniente de gargalhadas sadias. Ele fica irritado se alguém fala em comprar a coleção. Quando um milionário lhe pediu que pusesse preço à sua vontade, chegou a perder a cabeça e respondeu com palavrões. A recusa fez o milionário chorar de frustração e uma de suas lágrimas está na segunda fileira, brilhante como uma moeda nova. Notei a falta de uma lágrima do dono da coleção e o felicitei. Recusou os parabéns. Poderia ter ali uma lágrima própria, escolhida e pinçada dentre as que chorou de emoção naquela tarde de vinte e sete de março em que um famoso filósofo o beijou em ambas as faces, sem uma palavra, depois de também silenciosamente haver apreciado peça por peça e copiado todas as legendas. Quando se lembrou de colher a lágrima era tarde, tinha enxugado todas na manga do paletó. Ao me despedir pegou-me pelo braço, ficou imóvel parecendo hesitar, mas desembuchou e me confidenciou que ultimamente vem sendo atormentado por um sentimento de culpa. É que há lágrimas terríveis ali, cuja causa nunca revelou a ninguém, como por exemplo a nona e a terceira, que o fazem duvidar do seu direito de conservá-las vivas e com toda a sua força de dor. Já chegou a sonhar com elas desesperadas, bracejando no muco em que bóiam e cintilam. Esteve quase destruindo a coleção e jogando tudo no rio. Não o fez mas perdeu o entusiasmo e no mês passado deixou de substituir o muco das concavidades, que está mofando e tirando o brilho das lágrimas. Tem-se negando a receber visitantes – nem sabe por que me recebeu – e vem tomando medo de olhar para certas peças que parecem acusá-lo. Há pouco tempo não conseguiu colher uma lágrima fácil de pinçar e acabou rebentando-a por causa do tremor da mão. Não sabe como vai acabar tudo aquilo e está apreensivo.

- Ildeu Brandão
Reproduzido via Centro Loyola.

Para refletir:
1. Qual a lágrima que você guarda na memória?
2. Você já chorou por amor?
3. Como Deus se manifestou a você neste momento?

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