sexta-feira, 8 de abril de 2011

Doris Day e o patrulhamento gay



Da capinha do CD, seu sorriso luminoso me acena, solar. Eu sorrio em resposta e me deixo embalar pela voz doce, suave, de dicção impecável e afinação perfeita que escapa das caixas de som e preenche a sala.

Para aqueles que a conhecem, hoje em dia Doris Day é cult, chique, reverenciada como símbolo de uma era de ouro e outros salamaleques mais. Mas nem sempre foi assim. Houve uma época em que gostar de Doris Day era quase que se dizer abertamente comunista, confessar uma perversão inimaginável ou mesmo crer fervorosamente na vinda da cegonha. Houve uma época (principalmente no final dos anos 60) em que a ruptura de paradigmas, a chacoalhada na ordem e o surgimento das ideologias de contestação viram-se quase que no dever de eleger símbolos que representassem tudo contra o qual se deveria lutar, para depois demoli-los impiedosamente.

E assim, estupidamente usada como moeda de troca para justificativas ideológicas, Doris tornou-se careta, cafona, a "eterna virgem do cinema", uma chata de galocha, água-com-açúcar... e, por último, como se já não bastasse, acabou identificada com o universo gay. A partir daí, dessa cristalização do símbolo em torno de um dado pejorativo, deu-se um curioso mecanismo de transferência que imediatamente associava aquele que gostava de Doris Day à homossexualidade. Por outro lado, entre os próprios gays, apreciar Doris significava estar ligado a uma mentalidade conservadora, careta, antiquada.

A lógica cartesiana própria do pensamento humano (de que já falei quando toquei no assunto dos afetos) nos ensina que devemos catalogar e categorizar todos os elementos que apreendemos do universo ao nosso redor. Assim sendo, aos olhos de muita gente, não basta que eu seja apenas humano. Tenho de ser esquartejado, esmiuçado e rotulado de acordo com dados representativos como sexo, cor, idade, prática sexual predominante, local específico onde moro e até mesmo preferências musicais. Com isso, abre-se espaço para um certo controle tácito – vamos chamar patrulhamento – dessas características, a fim de que aquele elemento não se diferencie tanto dos demais integrantes de seu grupo social e, portanto, não se “desgarre”.

Todo e qualquer patrulhamento se apóia em modelos pré-estabelecidos que podem, é claro, ser substituídos tão logo uma nova ordem necessária à manutenção da coesão da estrutura social se estabeleça, em contraposição à antiga ordem vigente. Todo e qualquer desvio às normas prescritas naquela cartilha é imediatamente apontado pelos representantes do modelo como algo no mínimo suspeito e, portanto, não confiável. O patrulhamento induz à formulação de preconceitos e à propagação de verdades aceitas tão somente porque se verificam nas práticas usuais do grupo.

Nós, gays, estamos acostumados no dia-a-dia com esse tipo de situação. Volta e meia somos identificados e criticados pelos mais diversos motivos: a roupa, o modo de andar, o gestual, o grupo de amigos, as músicas que escolhemos para a nossa playlist etc, etc, etc. Isso não é novidade. Mas e quando isso acontece “de dentro”? O que fazer quando o controle parte de alguém inserido no próprio “universo gay”?

Esse tipo de comportamento, por incrível que pareça, é muito comum. Existe um patrulhamento gay que se manifesta de diversas maneiras. A mais freqüente delas é a que tenta “normalizar” a conduta. Namorei um menino que agia assim. O rigor com que ele apontava as falhas ou deslizes nos outros não era menor quando aplicado a si próprio. Eu o via constantemente se torturar ao se cobrar posturas e atitudes “de homem” no modo de vestir, de falar, de cortar o cabelo, até de andar. De pitoresco (e até engraçado), aquilo passou, com o tempo, a me parecer triste, angustiante.

Condicionado por inúmeros fatores e justificado por outros tantos, esse tipo de patrulhamento lida com um certo sentimento de culpa ou inadequação por não se pertencer à regra e força aquele que o adota a procurar comportamentos ajustáveis aos padrões sociais estabelecidos. “Gay? Não! Sou um homem que gosta de homens...” Quantas vezes já não se ouviu essa frase por aí? O contrário, o patrulhamento militante, é igualmente sem sentido, até mesmo travestido de um rancor revanchista. E, por isso, também triste.

A duras penas fui descobrindo que todo patrulhamento é burro. Porque é egoísta. Baseia-se nas suas próprias regras ou apóia-se em pressupostos acessórios que não correspondem a verdades essenciais. Fechado em si mesmo, não dialoga, não coteja outras realidades, não contempla novas possibilidades e, por fim, não se enriquece da experiência da troca de informações e visões de mundo.

Hoje em dia ouço Doris Day com as janelas abertas.

Mr. MM

P.S.: No último dia 3 de abril, Doris completou 89 anos de idade. Está bem de saúde, vive num rancho na Califórnia e dirige a Doris Day Pet Foundation, entidade que se dedica há várias décadas à proteção de animais. Como sempre acontece todos os anos, uma rádio de Baltimore realizou um especial de 3 horas com suas músicas e uma conversa ao vivo com ela.

Um comentário:

Anônimo disse...

The foolish and the dead alone never change their opinions.

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