quinta-feira, 24 de março de 2011

O sujeito hoje não é aquele que a sociedade tanto quis organizar


“O sujeito hoje não é aquele sujeito que a sociedade tanto quis organizar”, avalia Benhur Costa, doutor em Geografia, em entrevista concedida à IHU On-Line sobre sua tese, intitulada “Por uma geografia do cotidiano: território, cultura e homoerotismo na cidade”. Para ele, “existem aquelas culturas que são feitas ali no cotidiano e que são feitas de formas diversas em diferentes partes da cidade. No caso desses grupos não consolidados, em suas microterritorializações se formam práticas culturais bastante singulares”.

Nesta entrevista, realizada por telefone, Benhur explica a criação das microterritorialidades ocupada pelos sujeitos homoeróticos, um sujeito que dá vazão aos seus desejos, portanto não aquele idealizado pela sociedade.

Benhur Pinhós Costa é graduado em Geografia, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), onde também realizou seus mestrado e doutorado na mesma área. Atualmente, é professor assistente da Universidade Federal do Amazonas.

Confira a entrevista, originalmente publicada no site do IHU. Os grifos são nossos.

Como você entende os sujeitos contemporâneos e como a sua geografia cotidiana se forma?
O sujeito hoje não é aquele que a sociedade tanto quis organizar. Eu faço, em minha tese, um contraponto entre sujeitos contemporâneos e atores sociais, que vêm dos estudos do Goffman* e seriam aqueles meros cumpridores de papéis prontos que as pessoas devem aprender para se encaixar na sociedade. Esses papéis estão vinculados a um conjunto de normas sociais, à moral e à funcionalidade da sociedade. Goffman fala que o ator social cumpre papéis em cenas sociais. O sujeito é mais do que o ator e, ao mesmo tempo, questiona este. Ele age não somente para a sociedade, mas para si só e para seus companheiros, de uma forma espontânea e próxima de seus próprios desejos. O sujeito é aquilo que a sociedade não queria que fosse. Então, na verdade, hoje, esses sujeitos vêem a diversidade cultural, que a sociedade anterior considerava um desvio, como uma possibilidade de vivência, com culturas diferentes que querem também seu espaço na sociedade. Aqui, entra o caso dos sujeitos homoeróticos, dos quais falo na tese.

Que “microterritorializações urbanas” são formadas a partir das relações resultantes desses sujeitos contemporâneos?
Eu trabalhei com grupos homoeróticos, que fala da diversidade de desejos e sujeitos. Esses desejos foram regrados durante muito tempo. Mesmo o próprio conceito de homossexual foi cunhado pela medicina para gerar um pólo desviante do heterossexual, no sentido de regramento desses sujeitos. O que aconteceu? Esse regramento nunca foi suficiente. Na verdade, sempre houve manifestações, agregados sociais homossexuais e, ao mesmo tempo, uma força social de regramento também. O que isso resultou? Num desejo não aceito, mas que persiste, ou seja, não pode ser contido. Este desejo não aceito implica um conjunto moral e social que regra e descrimina os outros sujeitos. Assim surgiram as microterritorializações, que significam lugares possíveis para a prática desses desejos e se transformam em identidades diversas, contendo, ao mesmo tempo, a força desse regramento e a espontaneidade. A microterritorialização não é um território porque não tem fronteiras definidas e vigiadas. Por isso, eu coloco o “ção”, porque a territorialização significa uma produção de um território que nunca vai se fundar fundamentalmente como tal. E micro porque são pequenos espaços: uma boate, uma rua, um bar, um canto de uma praça. E também pela questão da flutuação, à medida que é muito efêmera a construção desses agregados sociais.

Como a cultura, o homoerotismo e a homossexualidade se configuram nas cidades, segundo sua pesquisa?
Eu trabalho dois vieses de cultura. Ela pode ser trabalhada como uma questão supraorgânica, isto é, existe uma cultura sobre os indivíduos que tentam regrar outros indivíduos. Ao mesmo tempo, existe uma cultura feita no dia-a-dia e de formas diversas, em diferentes partes da cidade. No caso desses grupos não consolidados, em suas microterritorializações se formam práticas culturais bastante singulares, que revelam estereótipos. Existe, ao mesmo tempo, nessas microterritorializações, uma cultura gay que se transnacionalizou, incluindo a música, a vestimenta, a divulgação dos comportamentos e as formas de falar. O que ajuda ainda a formar essas práticas culturais são determinados ambientes. Por exemplo, se você pegar um bar “x” e comparar com “y”, verá que cada um tem elementos díspares da homossexualidade, da cultura gay e ainda das relações que se tecem neles. Ou seja, cada microterritorialização tem condições diferenciadas de relações desses sujeitos, à medida que envolve a espontaneidade e a diversidade presentes nesses lugares, com muitas histórias diferentes. Por isso, essa análise é complexa. São lugares que possuem, além do movimento gay envolvido, uma trama histórica da organização da sociedade, capazes de revelar, ao mesmo tempo, contradições.

Qual é a importância de refletirmos sobre os espaços urbanos e o espaço ocupado pela homossexualidade?
A importância remete às microterritorializações produzidas devido a uma força de um cotidiano, que é de regramento dos indivíduos e os obriga a seguir determinadas práticas, ao mesmo tempo em que existem aqueles com forças espontâneas. Desta forma, o lugar é estratégico se pensarmos o espaço urbano como produzido com relações de poder e que acabam configurando possibilidades de existência de muitos indivíduos. Mas, além desses lugares estratégicos, existem espontaneidades dos indivíduos, também chamadas de táticas. Ou seja, a estratégia é a construção do espaço como totalidade, fazendo as pessoas cumprirem seus trajetos e suas atividades. No entanto, as táticas estão vinculadas ao desejo, à reunião dos indivíduos sem comprometimento, não necessariamente ligados a um conjunto de preceitos preexistentes. Então, essas táticas vão produzindo essas reuniões que se apropriam vagarosamente de partes desse espaço urbano possível de ser planejado.

Como a condição homossexual pede uma emergência de territorialidades urbanas?
A palavra homossexual foi cunhada no século XIX por uma médica húngara. Então, gerou-se esse conceito no sentido de verificar o que eram os chamados “pervertidos”, que na verdade seriam um pólo divergente da necessidade da instituição do núcleo familiar heterossexual, monogâmico, com preceitos de hereditariedade. Daí ter se produzido essa condição. Foi todo o regramento da sociedade que formou a condição homossexual, e, em virtude de sua capacidade de conter esse desejo homoerótico, a emergência foi a territorialização.

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*Erving Goffman é um sociólogo e escritor canadense. Estudou a interacção social no dia-a-da, especialmente em lugares públicos, principalmente no seu livro A representação do Eu na vida cotidiana. Para Goffman, o desempenho dos papéis sociais tem a ver com o modo como cada indivíduo concebe a sua imagem e a pretende manter.

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