domingo, 27 de fevereiro de 2011

A propósito do Pai Nosso (4)


Damos hoje continuidade à proposta iniciada no três domingos atrás de publicar, em partes*, a reflexão de Simone Weil sobre a oração do Pai Nosso. Para meditar, orar e, esperamos, aprofundar a fé. Um bom domingo a todos!

Perdoai as nossas ofensas (dívidas) assim como perdoamos a quem nos tem ofendido (a nossos devedores)
No momento de dizer estas palavras, será preciso já ter perdoado todas as dívidas. Não é somente o perdão das ofensas que nós pensamos ter sofrido. É também o reconhecimento do bem que pensamos ter feito, e de uma maneira geral tudo que esperamos da parte dos seres e das coisas, tudo aquilo que acreditamos ser nosso direito, tudo aquilo cuja ausência nos daria o sentimento de ter sido frustrados. São todos aqueles direitos que acreditamos que o passado nos dá sobre o futuro. Acima de tudo, o direito a uma certa permanência. Quando pudemos fruir de alguma coisa durante certo tempo, acreditamos ser nosso objeto e que o destino nos dá o direito de continuar fruindo daquilo. Depois pensamos ter o direito a uma compensação por cada esforço, qualquer tenha sido sua natureza: trabalho, sofrimento, ou desejo. Todas as vezes que um esforço sai de nós e que o equivalente disto não retorna a nós sob a forma de um fruto visível, temos o sentimento de desequilíbrio, de vazio, que nos faz crer que fomos roubados. O esforço de suportar uma ofensa nos faz esperar o castigo ou as desculpas daquele que se beneficiou, mas estes são apenas casos particulares de uma lei universal de nossa alma. Todas as vezes que alguma coisa sai de nós, temos necessidade de que pelo menos o equivalente daquilo volte a nós, e por que temos esta necessidade acreditamos ter um direito. Nossos devedores são todos os seres, todas as coisas, o universo inteiro. Acreditamos sempre ter um crédito e que todas as coisas nos são devedoras relativamente a todos os créditos sobre os quais julgamos ter direito, trata-se no mundo, sempre de um crédito imaginário do passado sobre o futuro. É a isto que é preciso renunciar. Ter perdoado a nossos devedores é ter renunciado em bloco a todo o passado, (com seus créditos imaginários). Aceitar que o futuro seja ainda virgem e intacto, rigorosamente ligado ao passado, por laços que ignoramos, mas completamente livre dos laços que nossa imaginação quer impor a ele. Aceitar a possibilidade de que qualquer coisa possa nos acontecer, e que o dia de amanhã faça de nossa vida uma coisa estéril e vã. Renunciando de um só golpe a todos os frutos do passado sem exceção, podemos pedir a Deus que nossos pecados não gerem em nossa alma seus miseráveis frutos de mal e de erro. Enquanto nos apegamos ao passado, Deus, ele próprio não pode impedir em nós esta horrível frutificação. Não podemos nos apegar ao passado sem nos agarrar a nossos crimes, pois o que é mais essencialmente mau em nós nos é desconhecido. O principal crédito que pensamos ter sobre o universo é a continuidade de nossa personalidade. Este crédito está implícito em todos os outros. O instinto de conservação nos faz sentir esta continuidade como uma necessidade e acreditamos que uma necessidade seja um direito. Como o mendigo dizia a Talleyrand: "Senhor, é preciso que eu viva; e a quem Talleyrand respondia: "Não vejo esta necessidade". Nossa personalidade depende inteiramente das circunstâncias exteriores, que têm um poder ilimitado para arrasá-la. mas preferimos morrer do que reconhecer isto. O equilíbrio do mundo é sempre para nós uma seqüência de circunstâncias tal que nossa personalidade fique intacta e pareça pertencer-nos. Todas as circunstâncias passadas que feriram nossa personalidade nos parecem rupturas do equilíbrio que, mais dia menos dia, deveriam ser infalivelmente compensadas por fenômenos em sentido contrário. Vivemos à espera destas compensações. A aproximação iminente da morte é horrível sobretudo por que nos obriga a descobrir que estas compensações não se produzirão. O perdão das dívidas é a renúncia à nossa própria personalidade. Renunciar a tudo que chamo "eu" . Sem nenhuma exceção. Saber que naquilo que chamo "eu" não há nada, nenhum elemento psicológico que as circunstâncias externas não possam fazer desaparecer. Aceitar isto. Estar feliz de que seja assim. A palavra: "seja feita a tua vontade", se nós a pronunciamos de coração inteiro, pressupõe esta aceitação. É por isso que podemos dizer em seguida: "Assim como perdoamos a nossos devedores". Perdoar as dívidas é a pobreza espiritual, a nudez espiritual, a morte. Se aceitamos completamente a morte, podemos pedir a Deus que nos faça reviver, purificados do mal que está em nós. Pois pedir-lhe que perdoe nossas dívidas, é pedir-lhe que apague o mal que está em nós. O perdão é a purificação. O mal está em nós e que aí permanece, Deus ele próprio não tem o poder de perdoá-lo. Deus perdoará nossas dívidas quando nos colocar no estado de perfeição. Até lá, Deus nos perdoará as ofensas parcialmente, na medida em que pudermos perdoar nossos devedores.

*Parte 1: 6 de fevereiro; parte 2: 13 de fevereiro; parte 3: 20 de fevereiro

_______________
Texto original:

WEIL, Simone. À propos du "Nôtre Père", In Attente de Dieu. Paris: Flamarion, 1996. Tradução de Elisa Cintra.

Tradução publicada originalmente no site da Comunidade Mundial de Meditação Cristã no Brasil

Nenhum comentário:

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...