sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Imagem de Deus e Diversidade (5): pluralidade, diversidade e o significado de “ser católico”


Reproduzo abaixo a quinta parte do artigo Imagem de Deus e Diversidade, publicado originalmente no nosso site. Após abordar o papel da Igreja, da Teologia e da Revelação e a impossibilidade de essas instâncias virem a esgotar Deus (na primeira parte); a mediação humana e o caráter histórico da Revelação, na segunda; a relação entre os fatos e questões contemporâneos e o entendimento humano da Revelação, na terceira; e a atual relação da sociedade e da Igreja com os temas da sexualidade e da homoafetividade, na quarta, reflito aqui sobre a pluralidade de visões no seio da Igreja católica e o próprio significado de “ser católico”.

No entanto, se em nível das declarações oficiais a questão homossexual permanece inalterada, com pequenos avanços ainda não satisfatórios para quem se sabe gay e deseja viver a plenitude da pertença à Cristo na Igreja Católica, em outros níveis eclesiais timidamente começa a haver uma mudança. Há muitos leigos e leigas que, apesar do avanço de movimentos conservadores nas últimas décadas, individualmente percebem haver um equívoco em determinadas posições eclesiais. Sem contar iniciativas organizadas e sólidas de reflexão e atuação GLS católica, como a comunidade norte-americana Dignity.

Isto mostra existir outras posições além da oficial que se consideram também católicas, também inseridas na comunidade fundada por Jesus Cristo. Será que tais pessoas, comunidades, mentalidades podem de fato ser consideradas Igreja Católica?

A resposta vai depender do que significa “ser católico” para cada um. Se pertencer ao catolicismo significa adentrar nas fileiras uniformes sob o comando da mentalidade única do papa, poucos o conseguirão fazer, se forem sinceros. Mas se, assim fosse, haveria ainda catolicismo no sentido mais original do termo, ou seja, o chamado a ser Igreja seria de fato para todos os seres humanos?

Um chamado para todos os seres humanos desde que eles caibam em uma estrutura fixa e rígida e não ajam de acordo com o que são (já que a sexualidade é muito mais do que uma questão do gênero sexual da pessoa por quem um indivíduo se sente atraído) é ainda um chamado à liberdade? É ainda um chamado feito na gratuidade? A pergunta que está por trás ao se refletir não só sobre a pertença eclesial dos gays, mas de todos os outros que se encontram à margem do discurso oficial, não é sobre a moral católica, mas sobre eclesiologia, sobre a compreensão do que é a Igreja. É possível a diversidade de pensamentos, vivências, visões de mundo no catolicismo?

Se esta pergunta nos provoca, nos constrange de alguma forma, nos amedronta porque parece ameaçar o reino das verdades definitivas ao qual me agarro para ter segurança, mesmo que não consiga viver ou mesmo explicar o porquê das coisas serem assim me contentando com o argumento de que “Roma dixit” (“Roma disse”, ou seja, não há mais o que conversar) a resposta será: “não, é impossível”. Está resolvido. A Igreja é uma realidade monolítica e homogênea, guiada por autoridade não apenas central, mas centralizadora e que tem bem definida as mínimas configurações para quem deseja fazer parte dela. Quem não puder, tente, se arrependa, tente de novo, ainda que passe a vida angustiado e tenha a sua auto-estima esfacelada pela luta interna contra si mesmo, tenha a esperança de ser feliz, um dia, no céu, quando tudo se acabar. Mas cuidado, pode ser que ao chegar ao banquete eterno encontremos à mesa muita gente diferente, aparentemente não convidada (Mt 8,11).

Mas se a nossa opção for levar a sério a vocação católica/universal da Igreja? Sobre que base é possível experimentar um catolicismo plural, diverso e absolutamente autêntico?

Já disse que, antes de perguntarmos à moral sobre os gays, precisamos perguntar à eclesiologia sobre a compreensão do que é a Igreja. Mas, ainda há uma questão anterior, mais primordial para entendermos a comunidade eclesial: qual Deus se revela na Igreja, na comunidade de fé?

O Concílio Vaticano II pôs em primeiro plano uma característica da Revelação divina que se deve ao contexto judaico em que se deu a revelação: ela é uma experiência, feita através de atos e palavras, e não um conjunto de verdades comunicadas do intelecto divino ao humano. O judeu semita não era um teórico como o grego, mas precisava de imagens para compreender. Talvez por isso a insistência de Jesus nas parábolas que, de forma prática, transmitiam os ensinamentos da Nova Aliança.

O cristianismo ganharia uma conceituação mais elaborada quando entrou em contato com o mundo greco-romano, iniciado através de São Paulo, e prosseguido pelas gerações seguintes. Então foi preciso dialogar com as diversas correntes filosóficas e explicar “racionalmente”, de acordo com o pensamento grego, a fé vivida originariamente nas comunidades advindas do judaísmo. Desse encontro surge a Teologia, na forma como a conhecemos e toda explicação racional que procure “dizer” a experiência da Revelação.

Esta inculturação (a fé vivida no contexto de determinada cultura) foi extremamente importante para a Igreja. Ela, de certa forma, abriu as portas para a evangelização de todo o Ocidente então conhecido, dominado politicamente pelo Império Romano e influenciado culturalmente pela herança grega.

Este encontro entre fé cristã e racionalidade ocidental atingiu o seu momento de maior comprometimento mútuo durante a Idade Média, quando toda a produção de conhecimento se dava em vistas da religião, a máxima “Filosofia, serva da Teologia” sintetiza bem esse momento.

Pode-se elencar muitas contribuições que este encontro entre fé cristã e pensamento grego gerou, uma das mais importantes é o conceito de pessoa humana. Porém, se a Teologia influenciou o conhecimento que hoje denominaríamos “laico”, também o contrário se deu.

Muitas vezes a Teologia não apenas serviu-se da Filosofia enquanto instrumental para a sua reflexão a partir dos dados específicos da fé cristã, mas também foi influenciada por esta mesma Filosofia ao refletir sobre Deus.

Não que isso signifique um erro, mas a palavra final sobre Deus é, sem dúvida, a da Revelação que, mesmo quando concorda com os atributos descobertos pela luz natural da razão, os reformula em muitos âmbitos.

Desta maneira, a Revelação pode e deve contar com os auxílios humanos que a Graça também inspirou, a partir da capacidade racional dos grandes filósofos. Mas quem tem em si, de acordo com a nossa fé, a prerrogativa única de ser a própria auto-compreensão divina, é a Revelação.

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